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12 de ago. de 2010

A ÚLTIMA BALA

Meu nome é Romeu dos Anjos. Tenho trinta anos, e estou neste momento sentado na beira da cama de um quarto de motel na BR-116, segurando minha pistola Glock 25 na mão direita, enquanto mantenho com a esquerda o gravador diante da boca, para registrar o que aconteceu hoje. O motivo de eu estar alerta vai ficar claro daqui a pouco, à medida que eu for falando.

Aliás, acho que cabe aqui uma explicação: desde que comecei a vagar por esse mundo afora, me virando do jeito que podia, adquiri o hábito de falar em um gravador, contando o que me acontecia durante o dia; é mais ou menos como uma adolescente escrevendo em seu diário. Essa foi a maneira que encontrei de enfrentar a solidão da vida que escolhi. Sabe, é como se eu estivesse conversando com um velho amigo, a quem se pode contar tudo, sem reservas, sabendo que ele não vai julgar você pelo que está contando a ele. Não, não, meu pequeno gravador Sony é um ouvinte compreensivo e silencioso. Os únicos sons que emite são o estalar que as teclas produzem quando o ligo ou desligo. E sabe o que é mais engraçado? Eu nunca ouço o que gravo! No dia seguinte, simplesmente faço outra gravação por cima da anterior. Não é esquisito? Para mim, falar já é o suficiente. Parece que a fita magnética absorve não apenas a minha voz, mas também todo o veneno da minha existência. Sinto-me mais leve, mais relaxado depois de algum tempo falando no minúsculo microfone embutido. O fato de eu estar repassando parte da minha vida hoje, é que sinto um medo danado de morrer antes do final de semana acabar, e, se isso acontecer, quero deixar alguma coisa registrada nesta fita. Dessa vez não a apagarei. Quem sabe minha história não acabe virando um livro?

São 03:15 da madrugada de um sábado qualquer, e o silêncio é quase absoluto, agora que o casal do quarto ao lado finalmente se aquietou. Ouço o vento soprando lá fora, e vez ou outra o barulho de um galho se quebrando, ou uma lata caindo. Atrás de mim, dormindo profundamente está uma garota de dezesseis anos, com cabelos louros lisos, trajando um vestido de festa azul marinho. Seu nome é Daniele, e estava tremendamente assustada. E antes que alguém pense que sou algum tipo de pedófilo nojento, quero deixar bem claro que estar comigo é a única coisa que ainda mantém essa garota viva. Esvaziei um pente inteiro da Glock e uma parte do reserva para conseguir tirar-nos vivos daquela maldita emboscada que armaram. E o pior é que ainda não tenho a menor idéia dos responsáveis por aquela matança toda. O Comando Vermelho? O Primeiro Comando da Capital? Algum grupo de extermínio formado por policiais? Pergunto isso porque já trabalhei para todos eles. Caramba, que cabeça a minha, não é? Esqueci de mencionar: sou um assassino profissional, ou pistoleiro de aluguel, se preferirem. Meu negócio é matar gente por dinheiro, e não estou nem aí para ideologias políticas, ou qualquer merda desse tipo. Se me pagam bem, eu mato. É bem simples, na verdade. Só que eu tenho meu próprio código de ética, se é que posso chamar assim. Não mato crianças, por exemplo. Nem gente idosa. Ou religiosos. Eu sei como soa esse tipo de coisa, parece uma grande besteira, mas para mim é importante. Eu estabeleci uma linha demarcatória, e não a ultrapasso por dinheiro algum. Isso é um grande desapontamento para alguns potencias clientes, mas não estou nem aí. Não tenho grandes ambições materiais. Não tenho carro, nem residência fixa. Obviamente, também não tenho família. Esqueça aquela imagem que passam no cinema de assassinos profissionais morando em coberturas de luxo. Na vida real, o buraco é mais embaixo, como se diz por aí. O negócio é fazer o serviço e manter-se vivo para receber a grana. A partir daí, é pé na estrada; deslocar-se de um lugar para outro como um fantasma, senão “os caras” pegam você.

Faço isso há sete anos, e faço muito bem. Tenho uma ótima reputação entre as pessoas que precisam desse tipo de serviço. Quando a grana está acabando, eu as procuro, e sempre têm alguma coisa para mim. Até hoje, nunca deixei de fazer um serviço, e nem a Polícia Federal sabe quem sou. Um retrato falado andou circulando por aí alguns anos atrás, mas tanto o retrato como o nome passavam longe de minha verdadeira pessoa. Sou bom em matar, e sou melhor ainda em fugir e me esconder. Eu nunca dei bandeira, pelo menos não até ontem, quando cometi o maior erro de minha vida. O resultado desse erro? Eu sentado neste quarto, com a pirralha dormindo atrás de mim! Mas já vou chegar lá.

A Festa de Casamento

Eu disse que não tinha família, mas isso é uma meia verdade. Meus pais morreram quando eu era um pivete, deixando eu e minha irmã Raquel sozinhos no mundo, em um barraco sórdido da favela Heliópolis, em São Paulo. Eu devia ter uns três ou quatro anos, e minha irmã nove. Depois que ficamos órfãos, uns tios por parte de nossa mãe vieram nos buscar. Mas, como não tinham condição financeira muito melhor que a nossa, fomos separados. Ela ficou em São Paulo, e eu fui levado para uma cidadezinha no interior de Minas Gerais.

Raquel era mais do que uma irmã para mim; era como se fosse minha mãe. Ela é quem me alimentava, trocava minhas fraldas, brincava comigo e me punha para dormir. Eu amava Raquel com todo o meu coração de criança, e sofri muito quando nos separamos, mas acho que ela sofreu mais do que eu. Ela me amava de verdade, sabe, é uma coisa meio doida isso, mas nos dávamos muito bem.

Mamãe era empregada doméstica, e trabalhava o dia todo nas casas de classe média e alta da cidade. Meu pai viajava pelo país, pulando de um emprego a outro. Mal o reconhecíamos quando voltava para casa, após meses de ausência. Uma noite, quando os dois voltavam da igreja, foram pegos em um fogo cruzado entre policiais e traficantes na entrada da favela. Morreram ali mesmo.

Caso alguém esteja ouvindo esta fita, vai notar que minha fala não é assim tão ruim, e me expresso com facilidade. Não notou? Que grosseria! Sabe, eu podia ter sido escritor. A vida não é mesmo uma piada?

Apesar da vida difícil, e talvez por causa disso mesmo, eu me afundei nos livros. Estudar parecia para mim a única maneira de fugir da pobreza, pelo menos naquela época, então me dediquei ao máximo na escola. Tinha excelentes notas, e era querido por todos meus professores. Fui do ensino fundamental ao médio de forma meteórica, e quando atingi a maioridade já estudava Letras em uma faculdade pública. Formei-me entre os melhores da classe, e fui escolhido como orador da turma. Após a cerimônia, um dos professores bateu-me nas costas afetuosamente e sentenciou: - Você vai ter um futuro brilhante, rapaz!

(Riso)

Imagino o que ele diria se me visse agora!

E como um ex-favelado, graduado em letras e com um horizonte se abrindo à sua frente foi terminar seus dias (que expressão horrível) como pistoleiro de aluguel? Bom, para simplificar, eu me atreveria a dizer que a grana é boa e o trabalho é pouco, apesar de arriscadíssimo. Mas tem gente que ganha no mês um terço do que eu ganho em apenas um serviço, escalando torres, ou trabalhando em minas de carvão ou siderúrgicas, podendo morrer a qualquer momento! Então, acho que o risco compensa.

Mas chega de falar da minha vida! Vou ao que interessa... o acontecimento que custou a vida de Raquel, seu noivo e uns vinte ou trinta convidados de uma festa de casamento, com exceção, é claro, de mim e de Daniele.

Como não tenho um endereço fixo há anos, Raquel nunca pôde me escrever ou telefonar. Era sempre eu quem ligava para ela, ou enviava um cartão em seu aniversário ou no Natal. Nestes últimos sete anos, só nos vimos pessoalmente umas cinco ou seis vezes. Raquel havia se tornado uma mulher alta e esbelta, a pele morena como a minha, os cabelos tão negros quanto seus olhos, que me fitavam com o mesmo amor de que me lembro antes de nos separarem. Ela se formou em Secretariado, e logo em seu primeiro emprego apaixonou-se pelo patrão, Douglas, um empresário bem-sucedido do ramo imobiliário, vinte anos mais velho que ela. Ela me contou, feliz da vida, na última vez que nos vimos, que estavam de casamento marcado, após um ano de namoro.

- Você vai ao meu casamento, não é, Romeu?

- Claro que sim, Raquel. Mas tem certeza que...

- Douglas é um homem maravilhoso. Você vai gostar dele!

- Mas você o conhece tão pouco.

- Conheço o suficiente para amá-lo.

Movido pelo meu profundo amor por Raquel, resolvi fuçar a vida do tal Douglas, e até onde pude descobrir, o cara tinha ficha limpa. Senti-me mais aliviado, e ontem, menos de vinte e quatro horas atrás, levei Raquel até o altar, mais bonita e radiante do que nunca em seu vestido de noiva. Douglas nos aguardava sorridente, suas mechas grisalhas realçando seu porte elegante. Contagiado pela felicidade de minha irmã, eu sorria feito um bobo também. Após a cerimônia, os noivos, eu e mais alguns convidados seguiram para uma recepção no sítio do noivo em São Francisco Xavier, os faróis acesos e buzinando feito alucinados. Raquel ria e parecia incapaz de parar de abraçar e beijar Douglas. Eu seguia no carro logo atrás dos noivos por uma estradinha de terra. Foi quando notei algo estranho, e meus instintos de predador se aguçaram.

No lusco-fusco do dia que já se despedia atrás dos morros, notei uma picape Blazer preta parada ao longo da estrada, em um acesso quase todo tomado pelo mato. Não foi possível ver os ocupantes devido aos vidros totalmente negros. Naquele momento cogitei em deixar aquele alegre comboio e retornar, e foi aí que cometi um erro terrível: julgando-me paranóico, o que acaba acontecendo em minha profissão, ignorei o alerta que havia disparado em minha cabeça, e segui em frente. Quando transpusemos o portão da propriedade, estacionei o Gol alugado e abri o paletó cinza escuro também alugado para a ocasião. Soltei a fivela do coldre que mantinha a pistola Glock no lugar, e apalpei o bolso interno em busca do pente de balas reserva. Quando se trabalha com a morte, nunca se vai a lugar algum desarmado; essa sempre foi a minha regra básica. Fui até o portão, chequei a estrada e o mato ao redor, e nada. Dei-me por satisfeito. Como fui idiota!

O céu já se tornara negro, as luzes dispostas pelos jardins da propriedade se acenderam e a música estrondejou pelos alto-falantes. Uma seleção de dance music dos anos 70, bem ao gosto de Raquel. Os convidados começaram a sentar-se às mesas, crianças corriam de um lado para outro, garçonetes bem-alinhadas surgiram de repente, executando sua dança entre as pessoas. O murmúrio de vozes subira bastante para competir com o som. Raquel veio correndo me encontrar. Tinha despido o véu, a cauda e as luvas, e continuava linda. Naquele momento a força do amor que sentia por minha irmã pareceu desabar sobre mim... (Pausa)

- Você está maravilhosa. – eu disse.

- Obrigada, querido. Agora que eu casei, você vai me visitar mais vezes, não é?

- Bem, eu... é, acho que sim. – respondi meio sem jeito.

Raquel sorriu.

- Você, sempre cheio de segredinhos... desde criança você era assim, todo independente, metido a durão.

- Não sou metido a durão! – retruquei, rindo. Raquel era a única pessoa que me fazia rir com facilidade.

(Uma lágrima cai)

- Raquel! – uma voz feminina chamou. – Não vai jogar o buquê?

- Já vou! – ela respondeu. – Tenho que jogar o buquê para um bando de solteironas desesperadas. E você, não se atreva a ir embora de fininho, hã?

- Prometo. – retruquei. Não perderia essa festa por nada. Amo você, mana.

Raquel piscou, meio incrédula. Eu nunca fui do tipo que faz declarações de amor.

- Ah, Romeu, Romeu, meu irmão querido! – ela me abraçou apertado, me deu um beijo na bochecha e saiu correndo para os braços de um bando de moças que a esperavam, quase histéricas.

Quanto a mim, continuava com aquela sensação de que alguma coisa não ia bem, como se o cenário perfeito pudesse desmoronar a qualquer momento. Andava para lá e para cá, a gravata frouxa, sentindo o peso do coldre sob minha axila esquerda, tentando sondar discretamente os limites do lugar.

Nesse momento eu a vi passando por mim, falando ao celular. Registrei em um breve olhar os cabelos muito claros e o rosto de criança, e continuei minha ronda. Uma garçonete me ofereceu uma bebida. Não iria consumir álcool naquele momento, queria meus sentidos funcionando em nível máximo, mas peguei o copo suado da bandeja para não chamar muita atenção.

Um galho estalou em algum ponto à minha direita. Estaquei de cabeça baixa, passei o copo para a mão esquerda, e fechei os olhos. A música atrapalhava minha concentração, mas fiz o melhor que pude. Como sempre, deu certo.

Outro galho estalou, agora à minha esquerda, talvez a uns vinte metros de onde eu estava. Ouvi sons abafados, como passos sobre mato. Um arbusto farfalhou. Meu coração começou um louco galope dentro do peito, e a adrenalina inundou minha corrente sanguínea. Joguei o copo no chão e enfiei a mão dentro do paletó, envolvendo a coronha da pistola. Olhei para trás, por cima do ombro. A festa estava começando a esquentar; alguns convidados já se lançavam em uma pista de dança improvisada, os comes e bebes corriam soltos. Temi por Raquel, precisava avisá-la.

Comecei a recuar de costas para a cerca que delimitava a propriedade, ainda com a mão dentro do paletó. Meus olhos corriam de um lado a outro, procurando algo em que fixar. Ouvi mais estalos, e mais mato sendo pisoteado. Não tive dúvidas de que haveria um ataque a qualquer momento.

Olhei por sobre o ombro novamente para divisar minha irmã, e então senti o estômago congelar.

O som de uma arma sendo engatilhada chegou até mim!

Saquei a pistola, virei-me e comecei a correr. Gritei para que corressem, se abrigassem... então, o inferno se libertou.

Escondi-me atrás de uma palmeira real, no exato momento em que o ar se encheu com o matraquear de armas pesadas. As balas passaram zunindo raivosas por mim, e vi uma das caixas de som explodir. Em seguida uma senhora idosa foi atingida no peito e na cabeça, caindo de pernas abertas no gramado bem cuidado. Cadeiras, garrafas, enfeites e pessoas voavam aos pedaços. A violência do ataque me deixou aturdido por alguns instantes; nesse meio tempo – não mais que cinco ou seis segundos – contei doze pessoas caindo, inclusive crianças.

Rompi a paralisia, e, parcialmente coberto pela árvore joguei-me ao chão, fiz pontaria e pressionei o gatilho três vezes. Dois atiradores caíram com buracos fumegantes em suas testas. Fiz uma varredura visual, e constatei sete atiradores ao todo, fora os que eu havia liquidado. Dois deles concentraram o fogo sobre mim, dilacerando o tronco grosso da palmeira, enquanto os demais avançavam para os convidados, atirando, mas não a esmo, como pude observar. Pareciam escolher os alvos. Ocorreu-me que talvez estivessem procurando alguém.

Pensei por um instante em Raquel, se teria conseguido fugir. No instante seguinte, uma bala passou a milímetros de minha orelha esquerda. Hora de reagir.

Orientando-me pelo som dos disparos, dei a volta na palmeira e disparei quatro vezes. Atingi um dos atiradores no pescoço, e outro no tórax. Aproximei-me dos dois, que ainda respiravam, e terminei o serviço.

Abaixei-me para pegar o fuzil AR-15 de um deles. Nesse momento vi o vulto branco de Raquel caído no chão, seu vestido de noiva parecendo brilhar em contraste com a grama verde escura, e com as manchas de sangue que afloravam nele.

Cego de raiva empunhei o fuzil e avancei nos atiradores, que, por incrível que pareça, se revelaram amadores o bastante para dar as costas ao único convidado que estava resistindo!

Puxei o gatilho e segurei-o, sentindo o coice cadenciado da arma contra meu ombro direito, enquanto derrubava os assassinos de minha irmã. Uma arma maravilhosa, o AR-15. Em segundos, só restavam dois deles, mas a munição acabara. Os desgraçados haviam se jogado no chão, atrás dos corpos amontoados de suas vítimas. Quando meu fuzil silenciou, se ergueram para me alvejar. Lentos demais. Saquei novamente a Glock e esvaziei o pente.

Olhei em volta: eu era o único em pé, em meio a fumaça das armas e aos corpos que se espalhavam em todas as direções. Então notei um movimento com o canto do olho. Corri em direção à palmeira, certo de que não conseguiria chegar. Joguei-me pelos últimos dois metros, a tempo de evitar uma rajada letal. Rolei de lado, ao mesmo tempo em que retirava o pente reserva do bolso do paletó. Recarreguei a arma, puxei o ferrolho e esperei. Outra rajada atingiu a árvore, que continuava resistindo. Bendita palmeira!

Espiei rapidamente, e o atirador fugia pelos fundos da propriedade, arrastando pelo braço a garota loura que eu havia visto antes e olhando por cima do ombro, apontando desajeitadamente uma submetralhadora Uzi em minha direção. Fiz pontaria e atirei. Uma. Duas. Três vezes. Então meu alvo cambaleou, o sangue jorrando de três lugares diferentes, e caiu de cara no chão. A loura se desvencilhou de seu aperto e tentou correr, mas tropeçou e também caiu. Ainda fazendo pontaria no atirador aproximei-me, parando a alguns metros dele. Vi que estava gravemente ferido, mas vivo. Algo fácil de corrigir, pensei. Meti-lhe uma bala na nuca, ele estremeceu uma vez e deixou de respirar.

A garota gritava sem parar, os olhos arregalados, seus gritos saindo abafados entre os dedos com que tapava a boca. Olhava do corpo jazendo ao seu lado para mim, de novo para o corpo, e de novo para mim. Meus ouvidos zumbiam com o som dos disparos, de modo que minha tolerância a seus gritos era zero. Apontei-lhe a arma e mandei que se calasse, ou ia se juntar aos mortos. Tremendo e ofegante ela se calou, os olhos enormes no rosto infantil, debulhados de lágrimas.

- Quem... quem é v-você?

(Silêncio)

- Eu disse quem...

- Não interessa. Venha comigo. E bico fechado!

- P-para onde?

- Caralho, pare de fazer perguntas! Fique aí, se quiser.

(RAQUEL)

Caminhei apressadamente, evitando as poças de sangue e os corpos espalhados pelo chão, a garota andando atrás de mim, soltando um gritinho de horror a cada corpo que avistava. Em determinado momento pareceu-me que ela estava vomitando, mas não me voltei para conferir. Em minha mente só havia um nome, retumbando dolorosamente – Raquel!

Ela estava caída com parte do corpo debaixo da comprida mesa onde iria se sentar com o marido, comigo ao seu lado. Seus olhos estavam abertos, e um dos sapatos havia se soltado.

Raquel fora atingida várias vezes, e o lado direito de sua cabeça era uma ruína avermelhada. Ajoelhei-me, e delicadamente passei um braço por trás de sua cabeça, sentindo o estômago enjoar com a flacidez de seu pescoço. Puxei-a contra meu corpo, e abracei minha irmã adorada uma última vez. Não consegui me conter. Com o rosto colado ao dela, chorei e gritei, tentando absorver o choque daquilo tudo. Tentando aceitar que Raquel estava morta em meus braços.

Algum tempo depois, nem imagino quanto, levantei a cabeça, a visão ainda turva pelas lágrimas, e inspirei uma boa quantidade de ar. Soltei-o bem devagar, e enchi os pulmões de novo. Repeti o movimento por um ou dois minutos, e senti minha mente clarear um pouco. Deitei o corpo de Raquel no chão e enxuguei os olhos na manga do paletó. Olhei para trás. A garota loura estava parada a alguns passos de mim, as mãos cruzadas diante do corpo, os joelhos sujos, o cabelo desarrumado. Desviei o olhar, pensando no que faria em seguida, quando o toque de um celular me colocou de novo em alerta.

Perguntei a garota se era dela, e ela disse que não. Levantei-me e localizei o som. Enfiei a mão no bolso de um dos atiradores mortos, e peguei o aparelho. Olhei o display. A mensagem “Nikolay calling” brilhava.

Nikolay?

Quando aquele telefone parasse de chamar, mais gente seria enviada! Eu tinha que sair de lá o mais rápido possível.

Guardei o aparelho no bolso da calça, e quando procurava as chaves do Gol nos bolsos, uma mão pequena se fechou em torno de meu braço.

- Quem era aquela gente? Porque mataram todo mundo?

- Solte-me, garota. Tenho que sair daqui agora!

- Você vai me deixar sozinha aqui?

Os olhos acinzentados da garota me fitavam, suplicantes. Precisava pensar rápido, mas não conseguia. Por fim, fiz sinal para que ela me seguisse.

Talvez aquela menina tivesse algumas respostas, afinal de contas. Assumi o risco de levá-la comigo porque, em minha cabeça, já começava a arquitetar uma vingança contra aqueles que causaram a morte de Raquel.

Segurei a maçaneta do veículo e dei uma última olhada para trás, para Raquel. Queria tirá-la dali, mas era impossível. Dali a pouco mais criminosos chegariam ao local, ou talvez a polícia. Eu não podia permanecer nem mais um minuto ali.

Então, com o coração sangrando, dei um adeus silencioso a minha irmã, entrei no carro e parti, deixando uma parte de mim para sempre com ela. Ao meu lado, a garota que provavelmente era a causa de toda aquela merda, mesmo que não soubesse.

Confiro a hora outra vez. Exatamente 04:00 h. Estive falando por cerca de quarenta e cinco minutos. Daniele está acordando. Vou desligar por enquanto.

- Onde estamos?

- Isso faz diferença?

- Quero ir para casa!

- Se sair daqui agora, vai é para um cemitério.

- Você é policial?

- Não. Por que aquele homem tentou levar você?

- Não sei. Nunca o vi antes.

- Ele disse alguma coisa?

- Disse... mas não em português. Parecia estar raspando a garganta enquanto falava, não entendi nada!

- Estrangeiros... “Nikolay calling”...

- O que quer dizer isso?

- Ainda não sei.

- Vou ligar para os meus pais. Eles virão me buscar!

- Não seja tola. Largue esse celular. Quer ver seus pais mortos?

- Não! Então... então me deixe falar com eles. Dizer que estou bem.

- OK. Mas cuidado com as palavras. Aliás, qual o seu nome?

- Daniele. Daniele Galante. E o seu?

- Isso, garota, é algo que muita gente adoraria saber. Se quiser me chame de Thomas.

(Um minuto se passa)

- Caixa postal.

Em Fuga

Agora são 21:00 h de sábado. Tivemos um dia terrível, principalmente Daniele. Aproveitei para registrá-lo antes que o sono me domine de vez. Ela dorme profundamente em outra cama de hotel. Está esgotada física e emocionalmente, o que é perfeitamente compreensível nas atuais circunstâncias.

Saímos do primeiro motel às 06:00 h da manhã. Confiava que os bandidos não teriam visto nosso carro, o que se revelou mais tarde outro erro.

Assim que a locadora abriu liguei prorrogando o aluguel pro mais dois dias. Estávamos nos limites de São José dos Campos. Eu estava hospedado no César Inn, a poucos quilômetros de distância, e meu equipamento de trabalho estava dentro do quarto. Precisava resgatá-lo antes que nos localizassem. Dirigi para lá, atento a tudo ao nosso redor, procurando me antecipar ao inimigo. Em determinado momento achei que estávamos sendo seguidos, mas foi um alarme falso. Estacionei em frente ao hotel sem maiores problemas. O manobrista levou o carro, e eu e Daniele entramos no saguão, tomando a direção dos elevadores, seguidos por vários olhares. Infelizmente, a garota era bonita demais para passar desapercebida, algo que eu teria que resolver.

Entramos no elevador e pressionei o número 11. Daniele estava muito agitada. Procurei acalmá-la, sem muito sucesso.

Se alguém ouvir esta fita, pode se perguntar porque eu não a abandonei logo de uma vez. Uma parte de mim responderia que, se os assassinos a queriam, ela seria a isca perfeita para trazê-los até mim. E eu tinha contas a acertar com aqueles filhos da puta.

Outra parte, porém, diria que, depois de presenciar o assassinato de minha irmã, pude sentir pela primeira vez o que era estar na outra ponta da mira de uma arma, e, além do desejo de vingança, essa parte gritava incessantemente por expiação.

Entramos em meu quarto, e imediatamente abaixei-me e puxei uma pesada mala debaixo da cama. Meus instrumentos de trabalho, por assim dizer, estavam todos ali. Daniele me perguntou se podia tomar uma ducha. Respondi-lhe que tinha dez minutos no máximo, depois eu sairia dali, com ou sem ela. Sem fazer nenhum comentário, a garota entrou no banheiro, e um minuto depois ouvi a água escorrendo.

Abri a mala, expondo meus brinquedinhos: um binóculo infravermelho russo, minha outra Glock 25 no coldre, um revólver Taurus calibre .44 cano longo (comprei um depois de ler os sete volumes de “A Torre Negra”, de Stephen King. Me sinto o próprio Roland Deschains quando o empunho), vários pentes de munição, e meu xodó: um rifle de precisão de fabricação israelense com uma mira laser adaptada, uma verdadeira raridade; praticamente infalível.

Completando o conteúdo da mala uma caixa com 20 pares de luvas cirúrgicas, e uma faca de caça com uma lâmina de 20 centímetros de comprimento, dentro de uma bainha de couro.

Vesti o segundo coldre com a pistola, coloquei dois pentes reservas nos bolsos internos do paletó, e amarrei a faca em minha canela.

O som do chuveiro cessou. Enquanto aguardava a garota sair do banheiro, peguei um lenço e passei em todo lugar onde pudesse ter deixado impressões digitais.

Um minuto depois Daniele saiu com o vestido de festa sujo e amassado, e enxugando os cabelos. Não pude evitar registrar suas formas com um olhar rápido, o qual esperei que passaria desapercebido, mas não passou. Ela corou ligeiramente, e desviei os olhos para minha mala, que continuava aberta sobre a cama. Fechei-a com um estalo metálico duplo dos trincos de segurança. Peguei outra mala, esta bem menor que a primeira, onde trazia algumas mudas de roupa. Daniele fitava a cidade pela ampla janela do aposento, de costas para mim. Lembrei do efeito que sua figura causou nas pessoas no salão, e peguei o telefone. Disquei 0 e aguardei na linha. Uma voz aveludada de mulher recitou sua ladainha: “Recepção Amanda, em que posso ajudá-lo?” Perguntei se no hotel eles tinham uma loja de roupas. Tinham. Desfiei a lista do que precisava: um boné, um moletom, uma calça de abrigo e um par de tênis. Virei-me para Daniele e pedi seus números. Ela me falou e repassei à recepcionista. Amanda me prometeu que esses itens seriam entregues em meu quarto em vinte minutos no máximo. Perfeito.

Liguei a televisão e fiquei olhando para a tela onde as imagens se sucediam em um ritmo alucinado, sem prestar a mínima atenção. Era só um modo de passar o tempo. Exatamente dezoito minutos depois, um entregador trouxe as roupas e uma nota fiscal que assinei. Dei-lhe cinco reais de gorjeta, e ele só faltou sair saltitando. Mandei que Daniele as vestisse. Ela me fitou com aqueles olhos de um azul acinzentado muito bonito, e achei que iria protestar; mas ela simplesmente pegou as roupas e os tênis e voltou para o banheiro. Momentos depois ela voltou para o quarto, parecendo pronta para fazer um Cooper matinal. Aprovei o novo visual, e torci para que fosse o suficiente. Lembrei daqueles olhos em tom de cinza, e entreguei-lhe um par de óculos escuros. Ela os colocou com uma careta, como quem diz: “Ainda não está bom?”

Deixamos o quarto, eu na frente arrastando meu arsenal particular sobre rodinhas, e ela alguns metros atrás, levando minha mala de roupas. Todo o meu mundo em duas malas apenas. Isso me pareceu um bocado deprimente, pela primeira vez em toda minha vida.

Quando a porta do elevador se abriu no térreo, senti meu corpo tenso e meus sentidos aguçados mais uma vez. Por precaução mantive minha mão dentro do paletó, os dedos suados fechados em torno da coronha dura e fria da Glock. Constatei, satisfeito que havia conseguido o que queria: nenhum pescoço se torceu para olhar a garota. Queria sair dali o mais rápido possível, entocar-nos em algum lugar seguro, e pensar nos próximos passos.

Caminhamos até o balcão, e enquanto a recepcionista (Joyce, não a Amanda) fazia meu check-out, eu olhava várias vezes sobre o ombro, a mão direita ainda repousada na coronha da pistola, só saindo dali para pagar a conta (em dinheiro, of course, não rastreável, baby). Assinei a nota com o nome falso com que havia me hospedado, dei meu melhor sorriso de canastrão para a moça do balcão, e praticamente arrastei Daniele do saguão.

Alguns minutos depois estávamos de volta à BR-116, na pista em sentido Rio-São Paulo, rodando a confortáveis 90 quilômetros por hora. Um turbilhão de pensamentos se agitava em minha cabeça. Havia muitos espaços vazios a preencher naquela história, por assim dizer.

- Daniele, o que seu pai faz? Ele é rico?

- Não. Acho que pode nos chamar de classe média. Temos uma boa casa, um bom carro, mas sem exageros. Papai é engenheiro na Embraer.

- E sua mãe?

- Psicóloga. Tem um consultório no centro.

- Isso não faz sentido.

- Como assim?

- Veja bem: um bando com armamento pesado invade uma festa de casamento, mata todo mundo e tenta levar uma garota loura de uns quinze anos...

- Tenho dezesseis.

- OK, dezesseis. A garota em questão é filha de um engenheiro e de uma psicóloga. Os pais não são ricos para justificar um seqüestro, nem estão envolvidos em assuntos secretos do governo, por assim dizer. Estou certo?

- A-acho que sim. Ouça, você poderia me levar até meus pais e...

- Fora de cogitação por enquanto.

- E se aqueles bandidos foram atrás deles (ela começa a chorar)?

- Nesse caso, já terão ido a essa altura, não acha?

(Soluços)

- Seu desgraçado! Eu q-quero a minha mãe!

- E se eles estiverem de tocaia em sua casa? Iríamos direto para os braços deles.

Enquanto eu tentava entender por que queriam seqüestrar Daniele, notei pela primeira vez um veículo grande – parecia outra Blazer – no retrovisor, a uns cem metros atrás de nosso carro, talvez menos. E atrás dela, uma outra, idêntica – preta, com os vidros espelhados – a pouca distância. Não restava dúvida de que haviam nos descoberto.

Um minuto atrás eu estava inclinado a pegar a saída para a Rodovia Dom Pedro e seguir até Campinas, ou direto até Limeira, mas decidi que uma estrada mais movimentada com a BR-116 seria mais segura em caso de uma perseguição.

As duas Blazer nos seguiram por vários quilômetros, sempre mantendo a mesma distância. Procurei manter o Gol entre caminhões, rodando a maior parte do tempo pela faixa da direita. A estratégia funcionou até chegarmos nos limites de Santa Isabel. Ali a rodovia começa um sobe e desce de montanha-russa, e os caminhões diminuem muito sua velocidade, tornando impossível manter-se entre eles. Acelerei o carrinho até cento e dez – maldito motor 1.0 – e nossos perseguidores fizeram o mesmo. No segundo declive o primeiro nos ultrapassou, voltando para a faixa da direita em seguida. Fui obrigado a frear, reduzindo para 60. O segundo emparelhou com nosso carro, aproveitando-se da pista momentaneamente limpa. O vidro do lado do carona desceu. Um sujeito careca como uma bola de bilhar, de óculos escuros e bigode olhou para mim. Ergueu uma pistola – uma Beretta, meu olho treinado registrou – e gesticulou com ela, apontando para frente. O gesto era claro – Siga-nos – e não deixava muitas opções. Resolvi arriscar uma delas, por mais radical que fosse. Quando o veículo começou a desacelerar para reassumir sua posição atrás do nosso, saquei as duas Glock e gritei para Daniele agarrar o volante. Ela piscou, confusa, e hesitou por um instante, mas fez o que eu mandei. Com o polegar da mão direita soltei a trava do cinto de segurança, e no melhor estilo “Jason Statham” debrucei-me na janela até a cintura e fiz chover chumbo quente sobre o pára-brisa, a grade do motor e os pneus da Blazer. O carona chegou a disparar de volta, e uma bala passou zunindo pela minha orelha esquerda, mas a essa altura seu veículo já havia saído da estrada aos trombolhões, o motorista tentando desesperadamente controlá-lo, até se chocar com um barranco e capotar várias vezes. Milagrosamente nenhum outro veículo vinha descendo a rodovia naquele momento.

O veículo da frente tentou nos fechar, mais retomei o volante e afundei o acelerador até o piso. O Gol deu uma arrancada, e joguei-o com tudo em cima da Blazer. Daniele gritou. Houve um estrondo de metal e vidro se espatifando, e o carro deles também saiu da estrada, desaparecendo numa vala. Atingiu o fundo e explodiu. Tudo aconteceu muito rápido. Dei uma rápida olhada sobre o ombro direito, e vi chamas e fumaça negra subirem em rolos em direção ao céu claro e muito azul. Daniele chorava e tapava a boca com as duas mãos. Senti pena dela. Contrariando totalmente meu bom senso, disse-lhe que a levaria para seus pais, desde que jogassem as malas no carro e desaparecessem do estado por um bom tempo. Talvez para sempre. Lágrimas de gratidão e alívio jorraram daqueles belos olhos. Senti um nó na garganta, algo que não sentia desde que me separaram de Raquel.

Entrei no primeiro retorno que encontramos, e seguimos em direção de São José dos Campos. Passamos pelo local do confronto, e a confusão já estava se formando. Trânsito parado, curiosos se amontoando – alguns tirando fotos! – gente falando ao celular. Cristo! Passamos zunindo a mais de cento e vinte por hora. O tempo parecia se estreitar. Se eles tinham conseguido localizar nosso carro uma vez, não demoraria muito para localizá-lo uma segunda. Além do mais, a lateral estraçalhada logo chamaria atenção da Polícia. Hora de trocar de condução, baby.

Já nos limites de Jacareí avistei uma inocente Zafira estacionada no pátio de um posto de gasolina, no fim de uma fila de carros. Vidros insufilmados. Perfeita. Estacionei ao lado dela, abri o porta-malas do Gol e retirei as malas. Utilizando minhas habilidades de arrombador de carros, em dois minutos estávamos rodando novamente. Para nossa sorte, o dono nem sequer havia instalado um alarme. Calculei que teríamos pelo menos duas horas de tráfego livre, o suficiente para deixar Daniele com os pais e “cair no mato”, como se diz.

Daniele vivia em uma bonita casa no Jardim Esplanada. Passei em frente ao portão duas vezes, lentamente, verificando as janelas. Não notei nenhum movimento. Daniele tinha os olhos arregalados e respirava pesadamente. Parecia prestes a saltar do carro e derrubar o portão no peito. Estacionei a minivan do lado oposto da rua, e substituí os pentes das pistolas. Entramos juntos, falei para a garota, e eu fico com vocês até que se mandem. E você nunca mais me verá. Ela concordou, ainda com aquela expressão maníaca no rosto. Não a culpei.

Chegamos ao interfone ao lado do portão social. Ela chamou uma. Duas vezes. Nada. Tentou o óbvio, ou seja, girar a maçaneta do portãozinho, e ele abriu. Ela olhou para mim, os olhos mais arregalados ainda. Percebi que alguma coisa estava errada. Meus instintos gritavam dentro de minha cabeça para não fazer aquilo, que cairíamos em uma armadilha, mas aquela garota amolecera meu coração. Mesmo sabendo que sem ela dificilmente chegaria aos assassinos de minha irmã, queria vê-la em segurança o quanto antes. Então entramos. Cruzamos o jardim, eu com uma das pistolas ao longo do corpo, sempre de olho nas janelas. A porta da frente estava entreaberta. Outro mau sinal. Daniele perdeu o controle e correu para dentro. Gritei para que esperasse. Tarde demais. Entrei na sala e a vi subindo as escadas, gritando pela mãe. Saquei a outra pistola, rezando para que os vizinhos da família fossem surdos, e subi atrás dela, esperando a qualquer momento...

Parei no penúltimo degrau, apontei as armas para a direita, depois para esquerda, e me convenci de que a barra estava limpa. Daniele, por sua vez, estava parada à porta de um cômodo, uma das mãos apoiando-se no batente, a outra tapando a boca. Seus olhos estavam arregalados, e ele respirava com dificuldade. Caminhei até ela, e olhei para dentro do cômodo. Um quarto de casal. Totalmente revirado, com sinais de luta. Mandei que ela ficasse atrás de mim, e entrei no quarto. Chequei debaixo da cama. Dentro do banheiro. Até dentro do closet. Nada. Então me virei para Daniele e a vi com um papel nas mãos – uma folha comum, parecendo arrancada de uma agenda. Ela correu os olhos pela folha várias vezes, e seu lábio inferior começou a tremer. Lágrimas desceram por seu rosto. Ela sentou-se na beirada da cama, e escondendo o rosto nas mãos começou a chorar. Era um choro daqueles de cortar o coração. Baixo, porém profundo, entrecortado de soluços. Um pensamento repulsivo passou por minha mente: quantas viúvas eu fiz chorar daquele jeito ao longo de meus anos de matador?

Sentei-me ao seu lado, passei o braço por seus ombros e a trouxe para perto de mim. Ela não ofereceu resistência. Afundou o rosto em meu ombro e continuou a chorar. Eu podia sentir o contato de sua pele febril por cima de meu paletó. Delicadamente retirei o papel de sua mão, e o li. Era um bilhete de resgate, curto e grosso, que dizia o seguinte:

Entregue a menina ou os pais morrem.

Logo abaixo um endereço e o horário: Meia-noite de hoje. Que romântico. E original também.

Abracei Daniele mais forte e esperei pacientemente que ela se recompusesse. Sabia que precisávamos fugir daquela casa imediatamente, mas concedi a ela esse tempo. Alguns minutos depois, estávamos rodando novamente. Devido ao risco de identificarem o veículo roubado, sugeri que o abandonássemos. Seguiríamos a pé até um hotel. Daniele concordou, meneando a cabeça. Parecia anestesiada. Eu a compreendia perfeitamente.

Olho para Daniele. Quando ela dorme parece ter onze ou doze anos, ao invés de dezesseis. Agora são vinte e uma horas e vinte e cinco minutos. Gostaria de tomar um bom banho quente, me jogar na cama e dormir até a noite seguinte, mas há providências a tomar. Daniele irá ao encontro de hoje, mas os seqüestradores de seus pais terão uma surpresa nada agradável. Eu estarei lá para me certificar disso.

Vou desligar. O tempo está contra nós agora.

Acerto de contas

Sei que é arriscado falar enquanto estou de tocaia, mas preciso registrar isso. Pode ser que eu saia vivo daqui, pode ser que não. De qualquer forma, os dados foram lançados. Os jogadores fazem suas últimas apostas, agora.

De onde estou, sobre uma pilha de caixas apodrecida em um depósito alfandegário desativado (o cúmulo da originalidade, meu Deus!) e imerso em sombras, tenho uma visão quase total do local. A cerca de oito metros abaixo e vinte metros a frente de onde estou, vejo a garota de cabelos louros e vestido de festa azul marinho, andando de um lado para outro, impaciente. Nada se move, nem mesmo um rato atrás de um lanchinho noturno. Eu acomodo melhor meu rifle israelense no ombro, confiro mais uma vez a mira, e espero.

A garota consulta o relógio, claramente irritada.

Demorou menos do que eu esperava para convencê-la. E espero sinceramente que ela saia ilesa desse encontro. Mas não vou me preocupar com isso agora. O que me importa agora é vingar Raquel. Os motivos que movem esses malucos não me importam mais. Eu quero sangue. Muito sangue. E eles vão me dar o que eu quero, não importa o preço. A vida da garota lá embaixo, ou mesmo a minha.

Não foi difícil encontrar o lugar. Fica a apenas três quilômetros do hotel onde me hospedei com Daniele. Uma feliz coincidência.

Fecho os olhos e vejo o rosto de Raquel flutuar diante do meu. Lembro de suas últimas palavras para mim, com a clareza de um sino de igreja: “Ah, Romeu, Romeu, meu irmão querido”. Uma lágrima escorre por meu rosto – apenas uma, e então ouço o ruído de um motor se aproximando, seguido por mais outro. Dois veículos. No mínimo oito caras maus. OK. Venham, seus filhos da puta. Tenho balas para todo mundo!

Réquiem

Está difícil falar agora. Meus pulmões ardem, e a dor nas costelas fraturadas é excruciante. Porém, nunca fui homem de deixar um negócio inacabado. E este é, como eu temia, o meu último negócio antes das luzes se apagarem de vez.

(Tosse)

Minha previsão estava certa. Ao meu redor jazem os corpos de oito homens. Consegui abater todos, mas paguei um preço alto: fui atingido várias vezes: nas costelas, na perna esquerda e no estômago. Cara, como isso dói! O piso onde me encontro parece um estudo em vermelho.

Olho para minha esquerda, e vejo o corpo da garota loura, caída, as pernas esparramadas, um pé descalço e a cabeça arrebentada por um tiro de escopeta. Os miolos dela bateram na parede logo atrás. Pobre garota!

Em minha mente recordo a conversa que tivemos quando a abordei “fazendo ponto” na Praça Afonso Pena, algumas horas atrás...

- Quanto você quer me pagar?

- Quinhentos. Pela noite toda.

- Demorou, amor. E vai ser onde? No seu apê?

- Eu vou te levar lá. Mas antes quero que faça uma coisa para mim.

- Hummm, é algum tipo de fantasia, é?

- Entre no carro. Vou explicar o que eu quero que você faça.

Não foi difícil encontrar uma prostituta loura e com o tipo físico de Daniele. Agora me ocorre que não perguntei o nome dela. Eu a contratei e a convenci de que iria participar de uma brincadeirinha entre amigos. Funcionou perfeitamente. Quando o careca alto de óculos saiu do carro e a viu, ficou fora de si.

Daniele! Por um instante me esqueci dela! Movo-me com dificuldade, a dor me espetando o corpo em vários lugares. Como ela está?

Ah. Continua desacordada.

(...)

Merda... apaguei por alguns instantes... acho que não consigo chegar até Daniele. Preciso... preciso saber... se ela.. está...

(Respiração ofegante. Um baque. Outro.)

Está viva. Ótimo. Mas tem um belo ferimento na cabeça. Cortesia do “Doutor Hollywood” caído mais adiante. O cabelo sobre a têmpora esquerda está empapado de sangue, mas sua respiração é normal. Isso é... bom.

(...)

Merda... mer... (...)

Não sei por quanto tempo apaguei desta vez. Estou com frio. Mau sinal. As lembranças de tudo que aconteceu estão nítidas, mas falar está cada vez mais difícil...

Os dois Ômega pretos com vidros espelhados estacionam no meio do pátio empoeirado, flanqueando a garota. Ela se encolhe, e leva a mão à garganta. As portas se abrem quase que ao mesmo tempo, e os homens saltam de armas na mão, olhando para todos os lados, à procura de algo nas sombras que dominam o ambiente.

Eu sou esse algo.

Um homem alto, totalmente careca e de óculos desce do lado do carona de um dos carros. Aproxima-se da garota, esfregando as mãos e sorrindo feito um lunático.

- Finalmente. – ele diz, com um sotaque carregado. Alemão ou russo, não dá para dizer. – O momento chegou. E depois: - Você e seu amiguinho nos deram um bocado de trabalho, minha querida. Aliás, onde está ele?

A prostituta fica muda. Olha de um rosto amedrontador para outro sem parar. O careca se aproxima até a distância de um beijo. Graças à má iluminação do lugar, ele ainda não reconheceu a farsa, mas isso não vai durar muito tempo.

Eu faço mira na testa do miserável. Vai ser o primeiro, decido.

- Não quer falar, hein? – o careca diz. – Não tem problema. Teremos tempo para conversar mais tarde. Muito, muito tempo.

Meu dedo pressiona o gatilho levemente. Quase no ponto

- Você nem desconfia, minha princesa, mas você é a mais importante experiência científica deste século. De todos os séculos.

Súbito mudo de idéia e afrouxo o dedo. Preciso ouvir mais. Tentar entender.

Então a garota fala, e ferra com tudo.

- Do que cê tá falando, tio? Tá maluco? Quem é esse povo todo aí?

O homem a fita gravemente; vincos de tensão surgem em sua testa ampla e oleosa.

- O morenão me contratou, me fez vestir essa roupa e disse que ia rolar uma festa de arromba aqui. Agora chega esse bando de gente armada e...

O careca a agarra pelos ombros, com força. Ela grita. Ele a arrasta para frente das luzes dos faróis. Seus olhos se arregalam e a boca retorce para baixo, numa expressão de perplexidade e raiva.

Principalmente raiva.

- QUEM É VOCÊ? Ele a esbofeteia. – ONDE ESTÁ A GAROTA?

Foi a conta. O primeiro tiro estraçalha o ombro esquerdo do cara. Isso vai neutralizá-lo por algum tempo, mantendo-o vivo. Para responder algumas perguntas, caso eu tenha a chance de fazê-las.

Os capangas me localizam no instante seguinte, e começa a fuzilaria.

Sacrificando a precisão em favor da velocidade, acerto um, dois, três deles. Um tiro passa rente a minha cabeça, arrancando um pedaço da orelha. Não sinto absolutamente nada, e continuo atirando. O quarto cai morto. Depois mais um. Só faltam três, e é aí que a pilha de caixas onde estou desmorona. Caio no chão duro de cimento, e sinto uma dor horrível no joelho direito. Fraturado, com certeza. Arrasto-me para trás de outra pilha, atirando a esmo. Vejo a prostituta correndo aos berros, e vejo também o momento em que é atingida, sua cabeça transformada em um destroço sangrento. Sobraram só dois deles atirando. O som de uma automática enche o ambiente. Dois buracos sangrentos aparecem em minha perna esquerda. Grito de dor e aperto o gatilho do rifle. Claque. Vazio. Saco o revólver .44 e faço pontaria, minha perna latejando de forma alucinante. BANG. O cara que me acertou cai para trás com um tiro que faz o seu rosto desaparecer. Atiro novamente, errando o outro capanga em pé, que revida duas vezes. Um tiro acerta de raspão minhas costelas do lado esquerdo. Alguns centímetros para o lado e seria bem no coração. O seguinte me pega no estômago, ao lado do umbigo. Caio de lado no chão e me finjo de morto, o revólver ainda firme em minha mão. Minha respiração se torna borbulhante, o sangue inundando minhas vias aéreas. Meu corpo é pura agonia, e só consigo me manter acordado pensando em Raquel. O canalha se aproxima, a arma abaixada ao lado do corpo. Esse foi seu erro. Ergo o cano fumegante em sua direção e disparo, porém sem muita mira. O tiro acerta seu cotovelo, separando-o do braço. Ele dá um berro de surpresa e dor, e se vira para correr. Dois tiros nas costas encerram o assunto.

Usando toda a força de vontade que me resta eu me levanto. Puxo o ar aos trancos agora, fazendo um enorme esforço para respirar. Olho na direção do careca de óculos, e para meu espanto ele está de pé, apontando uma arma para... Daniele!

- Solte-a. – eu digo, apontando o revólver para ele. O maldito puxa a garota pelo cabelo e encosta o rosto dela no dele. Ela chora, seus olhos muito azuis embaçados pelas lágrimas, suplicando para mim. Seus lábios formam o nome que dei para ela – Thomas! Amaldiçoo minha ingenuidade. Eu deveria saber que ela não se contentaria em ficar no hotel esperando o desfecho disto. Afinal, era a vida de seus pais.

- Solte-a, eu estou mandando, seu bosta!

O careca ri, e fala alguma coisa em um idioma que eu não entendo.

- Por que? – eu mudo o rumo da conversa. Faz efeito. Ele pisca duas vezes, parecendo perplexo. Depois ri como um demônio, e começa a falar naquele sotaque carregado:

- Porque esta garota (a palavra sai como “garrotan”) tem um valor inestimável para nossa organização. Ela é a comprovação da superioridade da tecnologia russa!

- Do que você está falando, seu veado? Desembuche, vamos!

- Esta garota (garrotan) é o primeiro clone humano bem-sucedido da história da humanidade! Nós a desenvolvemos (no momento eu estava me lixando para quem quer que fosse “nós”). Ela pertence a nós, desde que nasceu!

- O-onde estão meus pais? – Daniele pergunta, a voz trêmula. – Você disse que os libertaria se...

- Eles estão mortos, minha querida (ao ouvir isso, Daniele inspira o ar bruscamente, num soluço sufocado). Mas não se preocupe. Eles eram apenas seus pais adotivos. Eu, Doutor Nykolai Petrovich sou seu verdadeiro pai! Eu a criei!

- Já chega dessa besteira. – falo, o dedo aumentando a pressão no gatilho. – Solte-a agora! Em resposta o russo puxa o cão da arma para trás, pressionando-a mais fundo no queixo da garota. Ela geme, e recomeça a chorar.

- Thomas! - ela implora. – Me ajude!

- Você tem constantes dores de cabeça, não é, meu bem? – pergunta o tal doutor, com o rosto ainda colado no dela.

Daniele parece surpresa.

- Como... como sabe disso? – ela pergunta.

- Oh, nós a acompanhamos. Eu tive acesso a todos os seus exames. Devo dizer que suas ondas cerebrais vêm desenvolvendo um padrão muito interessante, meu bem. Muito, muito incomum. Provavelmente resultado das drogas especiais que ministramos na mulher da qual retiramos as células usadas para... fabricar você, doçura.

O rosto de Daniele subitamente se contrai, numa expressão de puro ódio. Num gesto de fúria cega ela agarra o cano da pistola e o afasta de seu queixo; no instante seguinte ela crava os dentes na mão do Doutor, bem na junção do polegar com o pulso. Ouço um som de osso se partindo e o sangue esguicha. O homem grita de dor e a empurra com brutalidade. Ela se desequilibra e bate a cabeça com força em uma pilastra de metal, desmaiando.

Antes que ela atinja o chão meu dedo pressiona o gatilho, e a última bala no tambor explode a cabeça doentia do Doutor Nykolai, espalhando sangue, ossos e miolos para todos os lados.

- Raquel! – eu grito. – Sou Roland Deschains agora! Eu disparei a última bala!

- Eu sou o último pistoleiro!

(Sons de engasgo)

- Terminou. A história terminou. Posso... morrer... enfim.

(Um baque. Silêncio. Uma voz feminina.)

- Romeu.

(...)

- Romeu. Meu irmão querido!

- Ra... quel?

- Sim. Vim buscá-lo. Dê-me sua mão.

- Para... que? Onde... vamos?

- Recomeçar, meu amor. Recomeçar.

(CLIQUE)

- Essa última parte é que me dá arrepios. – diz o homem gordo de bigode, sentado atrás de sua mesa. Ele se recosta e a cadeira geme, protestando contra o peso.

- Bah, deve ser brincadeira de algum maluco. Quem vai acreditar numa história dessas? – responde-lhe outro homem, ligeiramente calvo, de cavanhaque bem aparado, sentado do outro lado da mesma mesa.

- Os corpos estão aí para provar. – argumenta o gordo. – Você mesmo esteve lá comigo.

- Sim, isso é uma coisa, mas... essa papagaiada toda de experiência científica, clonagem, drogas para o cérebro... isso não faz nenhum sentido! – o homem calvo tira um maço de cigarros do bolso e faz menção de acender um. O gordo o repreende.

- Você não sabe ler? – diz ele, apontando para um cartaz de “É proibido fumar neste local.”, com um mapa do Estado de São Paulo estilizado desenhado logo abaixo.

- Desculpe Delegado. – diz o calvo, guardando o maço e o isqueiro de volta no bolso. – Força do hábito.

- Um péssimo hábito, eu diria. Devia fazer como eu. Parei de fumar a dois meses, com ajuda daqueles emplastros. Sinto-me ótimo.

- Bom para o senhor. Mas eu já tentei, e não consegui passar mais do que oito horas sem um cigarro. Aliás, aqui todos os investigadores fumam, caso não tenha percebido.

- Deixe de ser abusado, Carlão. – diz o gordo. Você está é ferrado, isso sim. Você e todos os fumantes deste 19º Distrito.

- Falou a voz da sabedoria. – retruca o outro, e ambos riem.

A porta se abre, e uma moça magra, de olhos cansados enfia a cabeça dentro da sala.

- Não se esqueça que o senhor tem audiência as quatro, Delegado Paixão.

- Obrigado, Rita. O que eu faria sem você, hein?

A mulher dá um meio sorriso e se retira. O Delegado consulta o relógio.

- Puta merda. Já são vinte para as quatro. Tenho que sair. Depois continuamos esse assunto. Isso ainda vai dar muito pano para manga.

- Pode crer. – responde o investigador Carlos Alberto da Silva, ou “Carlão”.

- Por falar nisso, encontramos a garota? A tal Daniele de que ele fala na fita?

- Negativo. Ela evaporou como fumaça.

- Tome a frente dessa busca para mim, sim? Encontrá-la é muito importante. Vai preencher alguns espaços vazios nessa história.

Carlão sorri, satisfeito.

- Deixa comigo, doutor.

O delegado lhe dá dois tapinhas no ombro.

- Eu confio em você.

Ambos deixam a salinha pintada de um verde já descascando, mobiliada com uma mesa velha, duas cadeiras, um arquivo caindo aos pedaços e um computador obsoleto, que quase nunca é ligado. Sobre a mesa uma caixa de entrada e saída entulhada de papéis de um lado, e o telefone do outro. No centro, em pé como uma sentinela do final dos tempos, está o pequeno gravador Sony.

E ele permanece ali, com manchas de sangue em sua caixa plástica, mudo, encerrando em suas entranhas a história de vida e morte de um certo pistoleiro, de nome Romeu dos Anjos.

Epílogo

A garota caminha sem rumo pelas ruas da cidade de São José dos Campos. Está suja, despenteada e tem sangue seco nos cabelos louros. Vestida com um conjunto de moletom e tênis, ela passa despercebida entre as pessoas que seguem apressadas de um lugar para outro, a maioria delas também sem saber onde quer chegar.

Sua cabeça dói bastante, a visão do olho esquerdo está um pouco embaçada, e ela não se lembra como veio parar ali (onde quer que ali fosse). Ela nem sabe o próprio nome, muito menos a cidade em que está. Ela tenta desesperadamente se lembrar de alguma coisa – qualquer coisa, mas nada vem. Ela continua andando, desmemoriada e com medo. De que ela tem medo também lhe foge a compreensão, mas ela o sente assim mesmo. O medo deixa um gosto metálico em sua boca.

De repente a garota se lembra de que está com sede. Ao passar diante de um posto de gasolina, enfia a cabeça dolorida debaixo de uma torneira que encontra e bebe a água abençoadamente fria em grandes goles. Engasga e tosse, a água saindo pelas narinas. Depois enfia a cabeça inteira sob a torneira e lava aquela sujeira dos cabelos. A água que escorre para o ralo é marrom-avermelhada.

Com os cabelos colados à cabeça e a blusa encharcada ela parte, parecendo um tanto amalucada. Caminha até os pés doerem. Entra em um parque e se deita em um banco de concreto, adormecendo em seguida. Um casal de idosos que passa por ali olha para ela, balança a cabeça em desaprovação e segue em frente, em um passo lento e doloroso de artríticos.

Daniele Galante Fonseca dorme um sono profundo como a morte, povoado de pesadelos. Ao redor dela um cesto de lixo começa a levitar, assim como algumas pedras. A trinta metros dali, o marca-passo do velho que passara por ela para de funcionar, e o homem cai fulminado no chão, enquanto sua viúva grita por socorro, inutilmente. Os taxistas de um ponto ao lado do parque de repente passam a captar somente estática em seus rádios.

A garota emite uma única palavra - Não! – e o cesto e as pedras são lançados a centenas de metros de distância. Os rádios dos taxistas emitem um grito doloroso – CRAAAAACK – e fundem seus transistores.

Um esquilo sai de sua toca em uma árvore próxima e vem sondar a visitante. Não encontrando nada de interessante escala o tronco de volta com rapidez, e desaparece entre as folhagens.

Daniele continua a dormir, totalmente alheia a quem ou ao o que é.

3 de jun. de 2010

ANJO CAÍDO

ANJO CAÍDO

Beto pedala com vontade sua bicicleta, uma Mountain Bike Schwin quadro 18 com suspensão "Pro-Shock" novinha em folha, que ganhou do pai há quatro dias, em seu décimo primeiro aniversário.

Para desgosto do menino, na manhã seguinte àquela data, ele despertou com os pingos de chuva tamborilando no telhado. E o que a princípio era uma apenas uma pancada de verão, se transformou num aguaceiro que durou quase dois dias.

Várias ruas da cidade ficaram alagadas, e o trânsito virou um inferno. As aulas na maioria das escolas foram suspensas (bem, alguma coisa boa tinha que resultar disso, pensou o menino), e foi decretado estado de calamidade pública.

Naquelas condições, jamais sua mãe o deixaria sair à rua para estrear sua nova bicicleta. E ele também não estava a fim de colocar aqueles pneus pretíssimos, cheirando a borracha nova, naquele lamaçal em que as ruas se transformaram.

Assim, Beto esperou pacientemente (bem, quase) que o sol voltasse a brilhar. Ia até a frente de sua casa, e através das pesadas grades, vigiava o movimento das retroescavadeiras e dos caminhões da prefeitura. Moradores empurravam a lama de dentro de suas casas com jatos d'água e rodos. Em um só dia, Beto contou dezessete viagens de caminhões carregados de entulho, a maior parte galhos de árvores e destroços de móveis baratos que praticamente se desmancharam em contato com a água. Sua casa ficava na parte mais alta da rua, de modo que não foi atingida pelo avanço das águas do rio Paraíba, que cortava a parte leste da cidade de Eldorado, onde sua família vivia há mais de dez anos. Soube depois pelo noticiário que duas pessoas desapareceram, e mais de trinta famílias ficaram sem teto. A notícia da tragédia daquelas pessoas que ele nem conhecia abalou seu coração de menino.

Mas crianças de onze anos são extraordinariamente flexíveis, e recuperam-se com uma velocidade espantosa de situações que levariam um adulto à depressão.

No terceiro dia após a chuva parar, ele olhou para sua bicicleta novíssima, ainda sem uso, apoiada sobre o descanso em um canto da cozinha.

Contemplou seus aros e guidão cromados, alisou o selim de borracha macia. Então voltou para frente da casa, e continuou ali até escurecer.

Outra coisa aborrecia Beto, além do fato de não poder sair com sua bicicleta nova: era a falta de notícias de seu melhor amigo Guto.

Guto era um menino de origem humilde, e morava em um dos bairros mais distantes do centro, pejorativamente chamado pelas pessoas de "Barrancão". Ele não tinha telefone, de modo que Beto ficou esperando os dias passarem, até que toda a lama tivesse sido removida, e as ruas estivessem livres para ele novamente.

E agora ele pedala furiosamente, suas pernas bombeando os pedais como dois pistões, impulsionando o conjunto todo para frente, sempre em frente!

De sua casa até a casa de Guto são mais ou menos cinco quilômetros, e Beto vai diminuindo essa distância rapidamente.

A brisa fresca batendo em seu rosto suado é maravilhosa, e ele põe toda a força de suas pernas naquele movimento de bombear, a bicicleta oscilando ora para esquerda, ora para a direita, num esforço frenético.

- E se ele morreu? - perguntou para si mesmo, em voz baixa. A idéia fez um calafrio percorrer seu corpo.

- Não! - respondeu a própria pergunta. - Crianças não devem morrer antes de seus pais. Não é... natural (Beto ouviu certa vez sua mãe falando sobre isso com uma vizinha, e guardou essa frase como um mantra sagrado)!

- Além do mais - falava para si mesmo - Se o Guto ou alguém da família dele tivesse morrido, sairia na televisão. Eu ficaria sabendo.

Com esses pensamentos de menino, ele corta as ruas como o vento, sentindo-se praticamente invencível em cima de sua "bike".

Por fim, avista a casinha caiada de branco com janelas e portas azuis, onde moram Guto, sua mãe e seis irmãos (como aquela gente toda cabe em uma casa tão pequena é um mistério para Beto, acostumado desde sempre a ter espaço de sobra em sua casa).

E lá estava Guto, sem camisa, trajando apenas uma bermuda vermelha e branca surrada - presente de Beto ao amigo, seis meses atrás. Guto manejava uma enxada, retirando lama da frente da casa em pequenas porções, em um esforço lento e penoso (a lama vermelha lhe cobria as canelas magras). Ao lado dele há um balde grande e amassado, com certeza para retirar a sujeira e levar até um caminhão basculante da prefeitura, estacionado do outro lado da rua. Outros moradores fazem exatamente isso, no momento em que Beto freia bruscamente a bicicleta, parando a uns dez metros do portão da casa de Guto.

Olhava indeciso para a camada vermelha que cobria a rua de paralelepípedos, sem nem um pingo de vontade de enfiar sua "magrela" naquele lamaçal. Aliás, o mais provável é que ficasse atolado nele. Aí teria que erguer a bicicleta sobre a cabeça, e caminhar, afundando até as canelas como Guto.

Enquanto decidia o que fazer, Guto parou o trabalho e ergueu a cabeça para enxugar o suor da testa. Ao fazê-lo, avistou seu amigo, e foi logo gritando:

- Ô, mauricinho. Tá com medo de sujar a bicicletinha nova, é? E caiu na risada.

Beto mostrou o dedo médio para ele, mas ria também. Eram bons amigos. Guto adorava usar as diferenças sociais entre eles para fazer piadas, e Beto nunca sentiu nas palavras dele nem uma pontinha de rancor ou inveja.

A casa de Guto ficava ao pé de um morro, e quando chovia em abundância, como aconteceu agora, a lama descia, formando um rio caudaloso avermelhado, que invadia as casa nas proximidades.

- Me dá um tempinho aí, eu vou só jogar esse balde fora! - gritou de novo para Beto, que respondeu, as mãos em concha sobre os lábios:

- Tá bom. Eu espero.

Beto admirou-se quando o amigo ergueu o balde (quantos quilos estaria pesando com toda aquela lama dentro? Dez? Vinte?) e colocou-o sobre o ombro direito, caminhando pela lama até o caminhão.

Sua pele morena estava coberta de suor, e ele respirava igual a um cavalo no final de corrida. Mas chegou até a lateral do caminhão, tirou o balde do ombro e despejou seu conteúdo na caçamba, a qual já começava a transbordar de lama e entulhos.

Feito isso, foi até onde Beto estava, confortavelmente sentado sobre o selim de sua bicicleta. Estava todo sujo de lama, dos pés descalços aos cabelos encarapinhados, mas apesar do cansaço, abriu um sorriso radiante, de dentes branquíssimos e bem-feitos, ao contemplar a nova propriedade de seu melhor amigo.

- Uau! Que "bike" maneira! - exclamou, ao chegar perto. Ganhou no aniversário, né? Demais. Uau!

(Guto havia caído com uma forte gripe na véspera do aniversário de Beto, de modo que não pôde ir à festa na casa do amigo).

Beto desceu da bicicleta para que o amigo pudesse examiná-la melhor.

De perto, as diferenças entre os dois meninos eram gritantes:

Beto (Roberto da Silva) era loiro, usava o cabelo comprido como o de um surfista, alto para sua idade e magro como uma vara.

Guto tinha a tez mais escura, quase negra, era mais baixo que o amigo, mas de compleição física atarracada. Os músculos infantis se destacavam em relevo sob a pele. Era um ano mais velho que Beto.

O pai de Beto era um próspero empresário do setor de transporte rodoviário, e atualmente possuía uma frota de mais de vinte caminhões.

Ele e os pais (era filho único) moravam em uma casa grande e muito bem mobiliada, com dois carros "do ano" na garagem, uma TV de plasma de cinqüenta e duas polegadas na sala e uma bela piscina nos fundos.

Apesar disso, Beto, que estudava em um dos melhores colégios particulares da cidade, não era o protótipo do menino rico mimado, e tinha um bom coração. Seus pais lhe ensinaram a desprezar coisas estúpidas como raça e classe social, e a procurar o que havia de melhor dentro das pessoas.

Pois é lá, meu filho, que reside a verdadeira riqueza, sempre ouvira o pai dizer.

Guto (ou Luís Augusto dos Santos, nome de batismo), não conheceu o pai, e aos doze anos era o mais velho de seis irmãos. Estudava pela manhã em uma escola pública decadente perto de casa, e fazia bicos diversos durante à tarde, às vezes até anoitecer, para ajudar a mãe que lavava roupa para os outros, e pôr o que comer dentro de casa.

O padrasto, um bêbado imprestável com quem a mãe teve a infelicidade de juntar-se após a morte do primeiro marido, abandonou o lar assim que fez o sexto filho nela (e, na opinião de Guto, já ia tarde, pois além de não trabalhar, torrava o pouco dinheiro que entrava em casa com cachaça).

Diversas vezes, ao deitar-se tarde da noite após estudar para as provas, sentia-se tão exausto que o desejo de abandonar a escola tomava conta dele.

Mas sabia que, se não estudasse, se não se dedicasse de corpo e alma aos livros, jamais sairia daquela vida miserável. Guto sabia que só podia contar na vida com ele mesmo, e queria dar uma vida decente à mãe e aos irmãos.

Decidiu que seria médico quando crescesse. E se alguém zombasse dele por isso, ele se limitava a sorrir e baixar a cabeça, um pensamento martelando em sua mente ainda infantil: Eu vou provar a eles que posso. Vou ser doutor, um dia. Aí eu quero ver eles rirem!

Vendo o amigo trabalhando pesado no meio daquela sujeira, Beto envergonhou-se por sua mesquinhez, não querendo sujar a bicicleta nova de lama. Desde quando ele havia se tornado "fresco" assim?

- Sobe! - falou para Guto. - Dá uma volta com ela para experimentar. E, segurando a bicicleta por um dos lados do guidão, estendeu-a ao amigo.

Guto olhou para si mesmo, todo sujo de lama.

- Beto, não dá, eu estou todo... - começou a falar, mas o outro interrompeu-o:

- Vamos parar de frescura? Sobe logo nessa bicicleta! Vai!

Guto hesitou por mais um instante, depois falou:

- Tudo bem, você é quem sabe. E sentou-se, girando o pedal da direita para cima, e apoiando o pé sobre ele.

- Gutoooo! - nesse exato momento a voz da mãe chegou até eles.

- Ai, que saco, o menino falou, baixando o descanso da bicicleta e saltando do selim. - Que é, mãe? - gritou de volta.

- Vem terminar o serviço, pelo menos essa sujeira da frente da casa. Depois você brinca! - Oi Beto, tudo bem? Chegou água na sua casa?

- Não, Dona Iracema. Mas foi por pouco. - Beto respondeu.

- Mande um abraço para sua mãe.

- Mando sim, obrigado.

A mulher enfiou a cabeça para dentro da janela novamente. De dentro da casa, ouvia-se o choro de duas ou três crianças.

- Acho que só vai dar para brincar depois do almoço. - Guto falou, meio desconsolado. Tenho muito serviço pela frente ainda.

Então Beto teve uma idéia.

- Vamos fazer o seguinte: eu te ajudo com a limpeza. Depois você pega a sua bicicleta, eu compro uns lanches e refrigerantes para a gente, e vamos almoçar na mata do outro lado do rio, que tal?

- Você está pronto para se sujar, então? E é serviço pesado!

- Eu agüento. Se você pode, eu também posso. - respondeu Beto.

- Tá legal. Mas não diga que eu não avisei.

O serviço era realmente pesado, e Beto terminou com bolhas nas palmas das mãos, e tão ou mais sujo do que o amigo. E, mesmo com tudo isso, ambos divertiram-se a valer, jogando lama um no outro.

Às 11:00 horas eles pedalavam rua acima, em direção ao mercado mais próximo. O proprietário, um italiano mal-humorado, torceu o nariz para os dois meninos que entravam em seu estabelecimento, deixando pegadas enlameadas por toda parte. Ficou vigiando para ver se tentariam roubar alguma coisa.

Os dois pegaram pães de forma, frios, um pote de maionese, uma garrafa de 2 litros de Coca-Cola, e várias barras de chocolate.

Puseram tudo sobre o balcão do caixa, e o velho teve que engolir sua desconfiança, quando um deles (o loiro de cabelo comprido, que tinha cara de menina) puxou uma nota de cinqüentas reais do bolso da calça imunda, e pagou a compra.

Carregando os mantimentos em sacolas plásticas, subiram em suas bicicletas (a de Guto uma pesada e enferrujada Barraforte da Monark), e tomaram o rumo da ponte velha, que os levaria ao outro lado do rio, onde florescia exuberante a mata nativa. Lá, eles encontrariam um bom lugar para devorar tudo aquilo que levavam.

Enquanto os meninos se afastavam, o italiano olhava a nota de cinqüenta reais contra a luz, para ver se não era falsa.

Guto e Beto pedalavam sem pressa agora, equilibrando as sacolas plásticas nos guidões.

Atravessaram os trinta metros de comprimento da ponte, e aos poucos a cidade foi ficando para trás, com seus caminhões cheios de entulho, pessoas atarefadas, velhotes rabugentos, e tudo o mais.

A mata atlântica se descortinava a menos de um quilômetro deles agora, exuberante em seu verde e seus sons.

Ambos sentiam o vento nos rostos, e apreciavam o céu azul ornamentado de nuvens brancas. O sol brilhava majestoso sobre aquela parte do mundo, e tudo parecia estar em seus devidos lugares.

Mas os dois meninos iriam descobrir que nem tudo estava onde deveria estar!

Por fim, chegaram a uma trilha estreita, quase invisível, que partia da estrada de terra, e seguia ziguezagueando entre a vegetação, que de tão compacta, os obrigou a descer das bicicletas e empurrá-las pelo restante do caminho. Guto seguia na frente.

- Você sabe para onde estamos indo? - perguntou Beto.

- Fique tranqüilo. Eu sei o que estou fazendo. Só me siga, está bem? - Guto respondeu.

- Você é que sabe. Só espero que a gente não se perca. Teriam que chamar os Bombeiros para nos encontrar.

Beto teve um vislumbre dele próprio e de Guto perdidos na mata, gritando por socorro, enquanto a noite caía impiedosamente sobre eles, afastando cada vez mais a chance de salvação. Poderiam encontrar onças, ou cobras, ou cachorros-do-mato famintos, e...

Um calafrio percorreu seu corpo, e sentiu que os pêlos da nuca ficaram em pé.

À medida que a mata ia se fechando mais e mais sobre eles, e a luz do sol só conseguia passar espremendo-se entre a vegetação, uma certa fobia começou a se apossar de Beto. Gravetos e folhas secas estalavam debaixo de seus pés. Galhos batiam em seu rosto e braços. Devia estar arranhado em uma dúzia de lugares, pelo menos.

Sabia que se voltasse agora, Guto ia zoar com ele a semana inteira, para dizer o mínimo. Mas não pôde evitar perguntar:

- Falta muito para chegarmos? Haviam subido com grande esforço um morro, e agora começavam a descer.

- Putz, mas você é chato, hein? - retrucou Guto. - Pronto, chegamos, chorão!

- Chegamos onde? Eu não...

Então Guto pareceu desaparecer em meio a um clarão ofuscante. Aflito, Beto apertou o passo e entrou no clarão também.

Só depois que seus olhos se acostumaram à luz do sol novamente, é que ele viu que haviam saído em uma clareira.

- Uau! É... é demais aqui. Demais, cara!

Uma cachoeira formada por vários desníveis de pedra lisa corria preguiçosamente diante deles. Pássaros cantavam nas árvores ao redor. O sol produzia reflexos prateados na água limpa.

- Isso é um paraíso! - exclamou Beto, momentaneamente embriagado com tanta beleza.

- Descobri este lugar por acaso, faz alguns dias. - disse Guto. - Ia contar para você, mas com aquela confusão toda da chuva...

- O que você fazia no meio do mato para vir parar aqui?

- Bom, eu estava me sentindo meio chateado, e saí pedalando sem saber para onde. Quando percebi, tinha me enfiado na mata, perseguindo um macaco que vi na beira da estrada. E cheguei aqui!

- Perseguindo um macaco? E o que você ia fazer se o pegasse? Treinar ele para trabalhar no circo? - Beto disse isso, e caiu na risada.

- Sei lá, eu achei que podia ser um ótimo bichinho de estimação. - respondeu Guto, meio sem graça.

- Ah, tá bom. Guto e o Seu Macaco Amestrado. Fala sério, cara!

- Aposto que ele é mais inteligente que você, projeto de surfista.

- Aqui pra você, ó! - Beto mostrou de novo o dedo médio para o amigo, ainda rindo.

- Vá à merda! - Guto respondeu. Vamos nos livrar destas tralhas todas e dar um mergulho, que tal?

- Demorou! - Beto começou a se despir, ficando apenas de cueca. Guto fez o mesmo.

Escolheram uma parte mais funda e pularam em pé, afundando até o pescoço.

- Puta que pariu! - gritou Beto. - A água está g-geladaaa!

- Puta que pariu mesmo! - Cara, que frio! - gritou Guto.

Os lábios de Beto começaram a ficar roxos, e ele tremia da cabeça aos pés.

- Vou sair. Não agüento ficar... Então parou de falar de repente. Seus olhos castanhos fixaram um ponto por sobre o ombro direito de Guto.

- Beto? O que foi? O que você está olhando? - Guto perguntou, alarmado com a expressão apalermada na cara do amigo.

De boca aberta, Beto segurou nos ombros do amigo e o virou, para que visse o mesmo que ele tinha visto.

A princípio Guto pensou tratar-se de uma pedra. Mas quando se deu conta do que era, seu queixo desabou como o de Beto.

A mulher estava deitada de costas à margem do rio, a uns quinze ou vinte metros de distância dos dois meninos.

Seu braço esquerdo estava estendido por sobre a cabeça, e seus dedos tocavam a água corrente. A própria cabeça pendia para trás, a poucos centímetros da água. Parecia estar deitada sobre um monte de lençóis brancos, ou um edredom.

- Ela... ela está morta? - perguntou Beto.

- Não sei. Não dá pra saber daqui. - respondeu Guto. - Vamos chegar mais perto?

- Não! - Beto estava ficando assustado. - E se ela estiver apenas deitada tomando sol? Nós podemos assustá-la. Ela pode ficar furiosa!

- Tomando sol? - Guto pressentia algo estranho. - É, pode ser, mas quem ia ficar tomando sol numa posição tão incômoda assim? Caramba, ela vai acordar com uma puta dor no pescoço!

- Ela está nua? - perguntou Beto novamente.

- Parece que sim. - respondeu Guto. Nenhum dos dois tinha visto uma mulher nua antes (isso é, não pessoalmente). De repente, o coração deles disparou com essa possibilidade.

- Vamos chegar perto, mas com cuidado. - propôs Beto. - Para não acordá-la.

- E se ela estiver morta mesmo? O que a gente faz?

- Saímos daqui e chamamos a polícia, oras! - Vamos! - chamou Beto. - Vamos chegar mais perto.

- Estou sentindo cheiro de encrenca... Argumentou Guto, mas começou a sair da água. A brisa que soprava suave imediatamente fez seu corpo tremer inteiro, e ele começou a bater os dentes de frio. Beto também. Mas a sensação passou logo, à medida que se aproximavam da mulher deitada no chão.

Pararam a menos de três metros dela.

Os olhos deles se arregalaram, parecendo que iam saltar das órbitas. Seus queixos desabaram novamente, e o coração de ambos não disparou apenas, saiu numa louca cavalgada!

A mulher não estava deitada em cima de lençóis coisa nenhuma.

Eram asas!

Enormes asas brancas, como asas de cisne, se estendiam por baixo do corpo prostrado às margens daquele riacho de águas geladas.

- Meu Deus! - exclamou Guto. - São... são...

- São asas! - completou Beto, engasgado entre um grito e um soluço. Sentia o mundo girar, mas isso durou apenas alguns segundos.

- Ela deve estar fantasiada. - Guto arriscou uma explicação.

- Fantasiada? Do que? De mulher pássaro? Aqui, no meio do mato? Você ficou louco? - Beto irritou-se, porque no fundo queria aceitar a teoria do amigo, mas não conseguia.

- É? Então o que é isso? Um anjo? Aliás, uma "anja"? Hã? Hã? - Guto o desafiou.

- V-vamos chegar mais perto. - falou Beto, ignorando os comentários do amigo.

Ajoelharam-se um de cada lado da estranha figura, e a observaram com mais atenção.

A mulher era muito branca, e parecia bem alta (Guto calculou um metro e oitenta, mais ou menos), tinha cabelos negros cortados bem curtos, e um corpo de dar inveja a Juliana Paes.

Estava descalça, e sua roupa lembrava um daqueles macacões de mergulho que ficam colados à pele. Mas não se parecia nem um pouco com neoprene ou borracha. Parecia mais seda, ou coisa parecida. Um material muito fino, extremamente justo. Cobria o corpo dela das canelas até o pescoço, indo até os pulsos. As cores da roupa e da pele quase se fundiam; mas a estranha vestimenta tinha um leve tom "perolizado" (como Beto ouvira o pai dizer uma vez, quando conversava sobre pinturas de carros com um amigo).

E o rosto? Nem nos anúncios de cosméticos eles viram nada parecido!

Os traços era perfeitos, simétricos, a boca carnuda de um tom levemente rosado, o nariz no tamanho exato, delicadamente delineado (eles pensaram tudo isso em termos mais simples, de acordo com seu vocabulário).

Em uma frase: era a mulher mais espetacularmente linda que eles já tinham visto!

Guto tocou as penas das asas com as pontas dos dedos, maravilhado.

- Parece de verdade. É... é tão real! Tem que ser real, Beto!

Um Bem-Te-Vi cantou bem perto deles, e os dois deram um grito.

- Puta que pariu! - praguejou Beto. - Quase morri de susto!

- Eu também! - disse Guto. - Passarinho filho da...

- Esqueça isso! Vamos puxar ela para fora do rio.

- Mas...

- Ela está viva. Não viu o peito dela subindo e descendo? Está respirando, então está viva! Me ajude aqui, vamos!

- OK.

Guto pegou o braço esquerdo da mulher (notando inquieto como aquela roupa parecia ser uma segunda pele), e o colocou deitado sobre o ventre dela. Gotas pingaram de seus dedos finos e delicados.

- Olha só, Beto!

- O que?

- A água. A roupa dela não se molha!

Beto viu os pingos caírem sobre o corpo da mulher, e imediatamente escorrerem para o chão.

- Legal, a roupa dela é impermeável. Agora, é para tirar ela daí ou não?

- Segure as pernas dela, enquanto eu apoio a cabeça.

Guto pôs a mão esquerda sob a nuca da mulher, e passou o braço direito por baixo da cintura dela.

- Cuidado com as asas! - disse Beto.

- Eu tomo cuidado. Agora puxe! Devagar. De-va-gar.

Com surpreendente facilidade, eles a puxaram para fora do riacho, e a acomodaram no chão novamente, em uma posição um pouco mais confortável.

- Pronto! - falou Guto. - E agora?

- E eu sei lá? - respondeu Beto. Vamos tentar acordá-la.

- Certo. Ei, moça. Moçaaa! Acorde. Está me ouvindo?

Beto olhava para ela, fascinado.

- Cara, ela é tão linda! - falou, por fim.

- É, sim. - respondeu Guto. - Mas essas asas estão me deixando encabulado. É muito... muito.. ah, sei lá, sinistro!

Beto se abaixou, e seu rosto chegou a uns dez centímetros do dela. Parecia o príncipe encantado, curvando-se para acordar a Bela Adormecida com um beijo.

Então ela abriu os olhos. Beto deu um grito e caiu sentado. Rastejou de bunda para longe dela.

- Ela olhou para mim! Olhou para mim! Ela... ela abriu os olhos!

- Eu... estou... vendo... Guto falou, como se estivesse em um sonho.

A princípio os olhos fitaram apenas o vazio, imóveis.

Depois, lentamente, giraram para a direita, onde estava Guto, em pé ao lado dela.

Guto ficou estarrecido, sem conseguir desviar seus olhos dos dela.

A mulher tinha grandes olhos azuis da cor do céu, de uma beleza indescritível.

- Meu corpo... dói tanto. - a mulher falou. Sua voz era doce como o som de uma harpa.

Guto e Beto sentiram o sangue congelar nas veias!

Ela piscou duas vezes, voltou a fixar o vazio... e fechou os olhos, lentamente.

- Temos que levá-la ao hospital! - gritou Beto, de repente. - Senão ela vai morrer aqui!

- Você ficou louco? - retrucou Guto. - Quer aparecer na cidade com uma mulher com asas? As pessoas vão pirar! E, de mais a mais, como é que nós vamos tirá-la daqui?

- Ela é leve. - Beto argumentou. - Viu como foi fácil tirá-la da água?

- E se ela tiver fraturado algum osso da coluna? Ou uma costela? Lembra da palestra do Corpo de Bombeiros na escola? Podemos matá-la. Ou aleijá-la.

Beto olhou para a mulher deitada aos pés deles. De repente, sentiu vontade de chorar. Olhou para uma das asas, e parecia meio torta... como se estivesse quebrada.

- Então, o que nós vamos fazer? - perguntou a Guto, quase em prantos.

- Calma. Já sei! Um de nós fica aqui, o outro vai buscar ajuda.

- Não. A voz melodiosa soou novamente.

Os meninos olharam para baixo. Os enormes olhos azuis da mulher estavam fixos neles.

- A casa... perto da olaria. - ela falou. - Me escondam lá!

- Esconder? Esconder de quem? - perguntou Beto.

- As outras pessoas. Elas... não podem.. me ver. Por... favor.

Dito isso, fechou os olhos novamente.

Os dois se entreolharam.

- Sabe onde fica? - perguntou Beto.

- A olaria? Claro! Está abandonada há mais de um ano.

- Fica muito longe?

- Não. Acho que a gente consegue carregar ela até lá.

- Vamos tentar? - Beto perguntou, duvidando do que estava prestes a fazer.

- Ela pediu, não pediu? - Vamos ajudá-la.

- OK. Mas não vai ser fácil. - Beto suspirou. Vamos nos vestir.

Acabou sendo mais fácil do que imaginavam. Apesar do tamanho, a mulher parecia pesar menos de trinta quilos. Em poucos minutos, chegaram à olaria abandonada.

Passaram pelo forno há muito desativado, onde pássaros fizeram seus ninhos. Com a chegada do estranho grupo alçaram vôo, lançando pios estridentes.

O forno ficava em uma das pontas de um pátio retangular de terra nua, com cerca de quarenta metros de comprimento. Ao redor, o mato chegava à altura de um homem.

Na outra ponta, uma casinha de tijolos em ruínas.

- É lá? - perguntou Beto, já sem fôlego.

- É. Vamos levá-la para dentro.

- Pode ter cobras. Ou morcegos!

- Vou dar uma olhada primeiro. Vamos pô-la no chão. Devagar. Assim. Puxe a asa do seu lado, que eu puxo do meu.

- Certo - respondeu Beto. As penas sussurraram de encontro a terra.

- Isso. Assim. Tá legal! Vou dar uma olhada dentro da casa. - Guto falou.

- Tome cuidado.

- Vou tomar.

Guto se aproximou da casinha, e quando ia esticar a mão para segurar a maçaneta, uma cascavel passou por baixo da porta, e escancarou as mandíbulas, expondo os dentes e fazendo aquele horrível som de chocalho.

- Guto, cuidado! Uma co... Beto começou a gritar, mas sua voz sumiu de repente.

Viu algo branco passando rente a seu rosto, e ouviu um farfalhar como de seda.

Uma luz dourada cortou o ar, atingindo a cascavel em cheio. Essa incendiou-se imediatamente, e em poucos segundos, só restava dela um monte de cinzas.

Beto e Guto olharam para a mulher.

Ela estava deitada de bruços agora, com o braço esquerdo estendido na direção da casinha, e a cabeça erguida.

As pontas de seus dedos ainda brilhavam com um resíduo daquela luz estranha!

Então ela desmaiou novamente.

Suas asas se abriram em todo o esplendor, branquíssimas. Beto calculou que de uma ponta a outra, deviam medir uns quatro metros. E uma delas estava realmente quebrada!

Guto ficou vermelho, com se estivesse com febre. Grandes gotas de suor escorriam por seu rosto, pelo peito e pelas costas, empapando a camiseta.

A mulher havia salvado sua vida!

Dando-se conta do risco que correra, Guto sentiu as pernas moles como gelatina, e desabou sentado no chão duro.

- Meu Deus do céu... falou baixinho. - Onde é que fomos nos meter?

Surpreendentemente, no interior do casebre abandonado havia uma cama de metal com o colchão ainda sobre ela. O forro se abrira em vários pontos e a espuma se projetava dele como vísceras. O colchão fedia a mofo, e talvez urina de algum animal, mas seria melhor do que deitar a mulher no chão novamente.

- Quando eu contar três, a gente levanta ela e põe na cama. - falou Guto.

- OK.

- Um... dois... e... três. Upa! - os meninos a deitaram de costas. O estrado da cama gemeu dolorosamente, e um pouco de ferrugem se desprendeu do metal, polvilhando o chão de terra batida.

- As asas dela estão dobradas. - falou Beto.

- Vamos virar ela de lado, e ajeitá-las melhor. - sugeriu Guto.

- Tá legal. Ei, cuidado com a da direita. Acho que está quebrada.

- Vamos virar. Assim. Puxe a asa do seu lado. Guto tocou a asa esquerda, maravilhado com sua textura aveludada.

- Estou puxando. Dobre as pernas dela, ela quase não cabe na cama.

- Pronto. Acho que ficou melhor assim.

Durante toda essa operação, a cama rangeu como se fosse desmontar, mais agüentou. A estranha mulher continuou a dormir profundamente, apesar de toda a movimentação.

Guto e Beto desviaram um pouco o olhar de cima dela (era difícil fazer isso, constataram eles), e observaram melhor o lugar onde estavam.

A um canto da casa havia um fogão de lenha, e uma panela fora esquecida em cima dele. Não havia divisórias. A cama, o fogão e uma mesa com duas cadeiras ocupavam o único cômodo.

A um canto, uma cabeça de boneca olhava para as vigas do teto, Seus cabelos haviam sido louros algum dia, mas agora estavam encardidos. Faltava-lhe um olho.

Aqui e ali havia sinais de ocupação temporária: pontas de cigarro (muitas), uma garrafa de cachaça vazia, latas de cerveja, e até uma seringa, com algo marrom em seu interior. Guto deduziu que era sangue. De repente, sentiu o estômago revirar. Mas passou rapidamente.

Voltaram a olhar para a misteriosa mulher que haviam resgatado da beira do rio.

A luz do sol entrava pela janela e banhava suas asas, conferindo-lhe um brilho de prata pura. Era simplesmente lindo observar aquilo!

- Guto?

- Hã?

- Você reparou uma coisa estranha?

- Nããão, claro que não! Toda semana eu dou uma passadinha lá na cachoeira, e sempre tem uma mulher com asas por lá para bater um papo.

- Cala a boca, idiota! - Beto irritou-se, mas era apenas um sentimento superficial. O que o dominava completamente agora era um misto de assombro, encantamento e... medo!

- Calma, estressadinho! - respondeu Guto. - O que você ia dizer?

- Ela estava deitada na margem do rio, e o terreno lá é barrento. Depois, nós a carregamos pela mata, passando por galhos, folhas e mato. Agora, nós a pusemos nessa cama imunda.

- E...?

- Não tem sujeira! - falou Beto. Olha a sola dos pés dela; essa roupa branquinha, e as asas! Parece que foi tudo lavado com sabão Omo! Não tem uma folhinha, nem um grão de areia grudado no corpo dela.

- Caraca! - exclamou Guto. - Tem razão. Eu sabia que alguma coisa estava errada, mas não conseguia perceber o que era. Agora eu saquei!

- Como pode ela não se sujar? - perguntou Beto. - E, pensando melhor, quanto tempo ela ficou debaixo do sol? Não está nem vermelha!

- Como pode uma mulher ter um par de asas, para começo de conversa? - retrucou Guto. - Ela só pode ser... só pode ser...

- Um anjo! Um anjo que veio do céu, e caiu lá perto da gente!

Os dois ficaram olhando para a mulher adormecida durante algum tempo, mudos e fascinados com o que ocorrera.

- O que a gente faz agora? - perguntou Beto. - Chamamos nossos pais?

- Não sei... Viu o que ela falou sobre "as outras pessoas"?

- Ela não queria ser vista por mais ninguém, pelo jeito.

- Eu, no lugar dela, acho que também não ia querer. Imagine só a confusão se alguém descobre que ela está aqui!

- Então, o que a gente faz? Estou começando a ficar com medo! - choramingou Beto.

Nesse momento, o estômago de Guto roncou.

- Acho que já temos a resposta. - Guto falou, e riu.

Beto riu também, e isso aliviou um pouco a tensão dentro daquela casinha horrorosa.

- Eu volto para buscar as nossas compras, e a gente come aqui. - falou Guto. - Você fica para tomar conta dela.

- E se ela acordar, o que eu faço?

Guto pareceu confuso.

- Ah, sei lá, pô! - Puxa conversa com ela até eu voltar. Sei lá!

- E o que a gente conversa com uma anja?

Guto fez um gesto impaciente como quem diz "Não me enche", e saiu para o pátio ensolarado, deixando o amigo a sós com sua inusitada visitante.

No minuto seguinte, Beto ouvia o barulho de mato sendo pisado. Um galho estalou. Depois, silêncio total, exceto pelo canto de um pássaro ali perto, e o zumbido de uma gorda mosca varejeira que entrara na casinha.

Beto bateu palmas uma vez, e esmagou a mosca entre as mãos espalmadas.

Ela ficou grudada no dedo médio de sua mão direita. Algo parecido com muco saía de suas entranhas.

Com uma expressão de nojo, Beto sacudiu a mão, livrando-se do minúsculo corpo, depois limpou o dedo na bermuda, sem prestar atenção no que fazia.

Sem relógio, parecia que o amigo tinha partido há horas, e não poucos minutos. Beto ia até a porta, olhava o pátio e a mata, voltava para dentro, olhava a mulher dormindo, ia de novo até a porta.

Notou que as sombras começavam a mudar de lugar. Já passava muito de meio-dia. O sol brilhava esplendidamente, mas a temperatura era agradável.

Súbito, ele ouviu um ruído vindo do interior da casa. Algo parecido com sua mãe esticando os lençóis da cama. E quando a voz chegou até seus ouvidos, sentiu o sangue gelar nas veias:

- Olá, meu jovem benfeitor!

Beto permaneceu por mais alguns segundos naquela posição, em pé sob o umbral da porta, sem respirar. Então soltou o ar em um longo suspiro, e virou-se lentamente.

A mulher estava sentada na beirada da cama, os pés pousados no chão, olhando para ele e sorrindo - o sorriso mais fantástico que ele já vira em toda sua vida.

- Você parece assustado. - soou a voz musical novamente. - Está com medo de mim?

- M-medo, eu? - a voz custou a sair. - Não, medo não, só... só... eu não esperava...

- Venha. - ela convidou. - Sente-se perto de mim.

- Hã... tá! - Beto engoliu em seco, e fez o que ela pediu. A cama rangeu novamente, protestando contra a carga extra. Mais ferrugem caiu no chão.

Ela girou o tronco, e tomou delicadamente o queixo do menino com a mão esquerda, virando-o até que seus olhos se encontrassem. Suas enormes asas roçaram a parede, produzindo um som suave de sussurro.

Beto pensou que nem a Ana Paula Arósio tinha olhos tão bonitos, tão... azuis!

Então, para seu espanto, ela inclinou-se e o beijou na testa, demoradamente.

O contato de seus lábios era quente e úmido, e um arrepio percorreu a pele do menino.

- Obrigada, a você e seu amigo, por me trazerem em segurança para cá.

- Bom... de nada. - Beto parecia confuso. Afinal de contas, como a gente deveria agir na presença de um anjo de verdade? O que se diz para ele? "Como vão as coisas no céu? Tem falado com Jesus ultimamente"?

A mulher riu, e por um momento pareceu muito humana.

- Não vejo Jesus há vários meses. Desde que eu e meus companheiros partimos em nossa missão.

O queixo do menino desabou. Ela havia lido seus pensamentos! Caramba!

E ela tinha dito "companheiros"? Havia mais anjos por ali? Quantos anjos alguém tem a oportunidade de ver em um único dia? Caramba outra vez.

Passos cruzando o pátio. Uma respiração ofegante.

Guto parou na entrada da casinha, e foi a vez de seu queixo cair diante da cena.

A mulher-anjo e Beto sentados lado a lado na cama, como velhos amigos.

- Olá, Luís Augusto. - disse a mulher. - Ou posso chamá-lo de Guto?

Guto teve que tapar a boca com a mão direita, para abafar um grito de espanto. Ao fazer isso, derrubou a garrafa pet de coca-cola. Ela rolou e foi parar junto aos pés da mulher. Ela se abaixou e pegou a garrafa, estendendo-a a Guto.

- Por falar em nomes, o meu é Laureanna. Muito prazer.

- O... o.. prazer é.. todo meu, respondeu Guto, como a mãe o ensinara. - Está com fome? - perguntou à mulher, que agora tinha um nome, e um nome muito bonito por sinal.

- Não meus queridos. Eu não preciso comer, obrigada. Mas fiquem à vontade, por favor.

Eles ficaram. E comeram mais do que sua fome justificava, corroídos de ansiedade. Haviam muitas perguntas a serem feitas, mas não de estômago vazio.

Ainda aparentando fraqueza, Laureanna voltou a deitar-se na cama decrépita. Virou-se de lado, encolhendo as pernas, e ficou observando os dois meninos comerem.

Depois de alguns copos de Coca-Cola quente, Beto deu um sonoro arroto. Ficou roxo no mesmo instante. Olhou para a mulher.

- Desculpe. Foi sem querer.

Laureanna deu uma risadinha. Parecia divertir-se em observá-los.

E por que não? Fazia tempo que ela não era anjo da guarda de uma criança. E os anjos amam as crianças, porque o coração delas é a coisa mais pura que existe na Terra - até o momento em que o veneno dos Homens, invariavelmente, penetra em suas almas, levando-as ao pecado.

E nada deixa um anjo mais triste, que ver uma criança se perder ao tornar-se um adulto!

- Você queima a minha cara de vergonha, sabia? - disse Guto, mas em seguida ele próprio soltou outro arroto barulhento.

Beto apontou para ele e riu até chorar. Laureanna também riu mais alto, tapando a boca com a mão de dedos longos e delicados.

Terminada a refeição, os meninos voltaram-se para ela. Hora das perguntas.

- Laureanna, como é o céu? - perguntou Guto. Ela sorriu lindamente e respondeu:

- É tudo o que o Criador prometeu aos homens, e muito mais. Como está na Bíblia.

- Todos no céu têm asas como você? - foi a vez de Beto perguntar.

- Não, meus queridos. Todos nós somos espíritos de luz, mas existem diversas funções que exercemos. Nós recebemos asas para nos locomovermos melhor, e podermos servir melhor a Deus.

- E Deus? Como Ele é? Você já falou com Ele? - Guto perguntou.

Laureanna pensou por alguns segundos, indecisa. Por fim, falou:

- Você não vê exatamente Deus. Em Sua presença, você mais O sente do que enxerga propriamente. É simplesmente maravilhoso. Não há palavras em sua língua que definam como é Deus!

- Laureanna, você falou em companheiros, e em uma missão. Então, por que você estava sozinha, caída perto do rio? Onde estão os outros anjos? - Beto indagou.

Subitamente, o sorriso desapareceu do rosto perfeito da mulher, e sua expressão tornou-se grave e sombria.

- Nossa missão... ela murmurou, como se despertasse de um sonho.

Guto e Beto se entreolharam, confusos e um pouco assustados com a mudança repentina no humor de sua nova amiga.

Ela captou seus pensamentos, e tentou tranqüilizá-los.

- Não se preocupem, meus queridos. Vocês não correm perigo por enquanto. Mas o momento de nos separarmos está muito próximo.

- C-como assim? - perguntou Guto. - Que história é essa de correr perigo?

Laureanna fechou os olhos por um momento, e inspirou profundamente. Em seguida, abriu os olhos e fitou os dois meninos.

- É melhor que não saibam de nada. - ela disse, por fim. - Para seu próprio bem.

- Mas... Beto começou a falar, mas ela o interrompeu erguendo a mão.

- Por favor, confiem em mim. Em algumas horas, terei recuperado minhas forças plenamente, e minha asa estará curada. Então poderei partir, para retomar minha missão. Beto insistiu:

- Mas e seus amigos? Eles não vão com você?

Laureanna parecia aflita. Não queria contar a verdade aos dois meninos, mas também não sabia mentir. Anjos não mentem nem para salvar a própria alma. E ela tinha uma dívida de gratidão com ambos. Eles não sabiam - nem iriam saber - mas um grupo de pescadores acabaria por encontrá-la à margem do rio em pouco tempo, se eles não a tivessem tirado de lá, e trazido a salvo até aqui.

Decidiu contar-lhes a verdade. Conheça a verdade, e ela o libertará, lembre-se!

- Eu e mais dois anjos, Natanael e Balthazar, recebemos do próprio Gabriel uma missão sagrada. Ele nos escolheu a dedo, por julgar sermos os mais capazes de executá-la com sucesso, apesar do enorme perigo.

- Quem é Gabriel? - perguntou Beto.

- O Príncipe das Legiões Angelicais.

- E que missão é essa? - Guto perguntou. Sentia a boca seca.

- Resgatar um anjo caído. - Laureanna respondeu, e baixou os olhos. - Um renegado.

Beto e Guto observaram as mãos dela tremerem por um instante. Então ela entrelaçou os dedos, e apertou uma contra a outra.

- Peraí. - falou Guto. - Você está querendo dizer que...

- Sim. - ela respondeu, lendo os pensamentos do menino antes mesmo que ele os tivesse formulado. - Como o outro. Como Lúcifer.

À menção daquele nome, um calafrio percorreu os dois meninos.

Ela não está brincando, pensou Guto. A coisa é da pesada, mesmo. Jesus Cristo!

- Seu nome é Demetrius. - ela continuou. - Nós o perseguimos por vários mundos, até que ele veio parar na Terra. Mas no momento mais crítico nós falhamos.

- Vários mundos? Como assim? - indagou Beto.

- Outros planetas. Outras galáxias. Oh, meus queridos terrestres! Esqueci que vocês julgam serem os únicos habitantes em todo o vasto universo. Mas estão errados. Há mais de oitocentos mil planetas habitados, até onde meu conhecimento alcança.

- Oitocentos mil... falaram os dois ao mesmo tempo, de boca aberta.

- Mas não se aborreçam. Mais da metade dessas civilizações ignora a existência das outras. E será assim por muitas e muitas eras, acreditem.

Beto e Guto não conseguiram falar nada. Ficaram olhando para a mulher à sua frente, embasbacados.

- Deixe-me resumir a situação, por que está na hora de vocês partirem. Não é seguro ficar perto de mim.

Ambos balançaram a cabeça, concordando.

Laureanna olhou para as vigas apodrecidas do teto, suspirou e falou:

- Nosso último confronto ocorreu nesta mata, durante a tempestade. Se vocês caminharem mais dez quilômetros para o sul, verão uma enorme clareira que não estava lá antes de chegarmos. Foi nosso campo de batalha, por assim dizer.

- Natanael e eu havíamos conseguido imobilizar Demetrius, mas não contávamos que ele já havia arrebanhado seguidores das trevas para ajudá-lo. Antes de Balthazar conseguir acorrentá-lo, fomos surpreendidos por um ataque de criaturas da noite: vampiros, lobisomens, espíritos errantes. Ajudado por seu pequeno exército amaldiçoado, Demetrius subjugou meus companheiros, exaurindo suas forças de modo que tiveram de retornar ao plano espiritual. Eu consegui fugir, mas antes exterminei até o último de seus colaboradores!

- Praticamente sem forças, voei para o mais longe que pude, até desmaiar perto do rio. Quando amanheceu, no dia seguinte, vocês me encontraram.

Beto e Guto tremiam, e lágrimas brotavam de seus olhos.

Ela mencionou vampiros. E lobisomens! Bem aqui, na mata que cercava a cidade em que moravam desde que nasceram. Aqui, em Eldorado!

Vendo o medo nos olhos dos meninos, Laureanna ajoelhou-se diante deles, e envolveu ambos em seus braços, trazendo-os para junto de si. Falou docemente:

- Calma, meus queridos. Peço perdão por assustá-los. Amanhã, minhas palavras terão desaparecido de suas mentes, assim como minha lembrança. E suas vidas retornarão ao normal, eu prometo.

As lágrimas de ambos deslizavam pelo estranho tecido da roupa da mulher, e caíam no solo empoeirado. Por fim, se acalmaram.

Ela os afastou, e os olhou com ternura. Beto e Guto sentiram-se afogar na bondade que emanava daqueles olhos cor do céu.

- Agora sabem porque devem partir, e me deixar sozinha. Ao cair da noite estarei melhor, e continuarei minha missão. E vocês deverão estar bem longe daqui!

- Mas não queremos deixar você! - Guto exclamou, um pouco surpreso com a própria sinceridade.

- Queremos ajudar. - falou Beto. - Podemos pedir ajuda. Chamar a Polícia!

O sorriso de Laureanna alargou-se, tocada pela candura daqueles jovens corações.

- Eu estarei bem, eu prometo. - ela disse. - E nenhuma força na terra pode confrontar Demetrius. Acreditem em mim.

Guto se levantou, enxugando o rosto na camisa. Beto imitou-o. Apesar de tudo, não sentiam nem um pingo de vergonha por chorarem na frente daquela mulher.

- Quando você vai embora? - Guto perguntou.

- Ao anoitecer já terei partido.

- Podemos vir nos despedir, pelo menos?

- Não. Devemos nos separar aqui e agora. Imploro que não retornem a esta cabana até que eu tenha ido embora.

- Está bem. - os meninos responderam, sem muita convicção.

Laureanna leu seus pensamentos, e soube que iam voltar de qualquer jeito. Em seu íntimo, decidiu que partiria assim que o sol se pusesse, mesmo que não se sentisse totalmente recuperada. Assim, os dois meninos não correriam riscos.

Ela os abraçou novamente, e beijou cada um na testa e no rosto. Depois ficou observando-os partir, até que a mata os engolisse.

Então voltou para a cama caindo aos pedaços. Procurou a melhor posição possível, e em poucos minutos caiu em um sono profundo.

Ainda dormia quando o sol se despediu, e a lua já iniciava sua escalada no céu salpicado de estrelas.

A algumas centenas de quilômetros dali, e aproximando-se com velocidade vertiginosa, asas cor de chumbo cortavam a noite.

Ele a havia encontrado, afinal.

E o melhor de tudo: ela estava vulnerável.

Fazia mais ou menos uma hora que Beto e Guto tinham retornado da mata. Jogaram as bicicletas sobre a calçada de qualquer jeito, e sentaram no meio-fio, lado a lado, em frente à casa de Guto. Ambos sentiam-se como se tivessem acabado de despertar de um sonho, ainda naquela fronteira em que a mente não distingue fantasia da realidade.

Por fim, depois de alguns minutos de silêncio, Beto falou:

- Isso aconteceu mesmo, Guto? Nós estivemos conversando com um "anjo-mulher"? Ou será que nós dois estamos ficando loucos?

- Nunca ouvi falar de duas pessoas ficando loucas ao mesmo tempo. Principalmente tendo as mesmas alucinações. Balançou a cabeça de um lado para outro, como se tentasse clarear as idéias.

- Não. - falou para Beto. - Eu sei que não fiquei louco. Nós realmente ajudamos um anjo. E ela nos beijou, lembra-se?

- Claro que lembro. Foi como se minha mãe me beijasse. E o cheiro dela... muito gostoso!

- Pois é... ela cheirava como uma flor... não sei bem qual, mas um perfume muito bom. Faz a gente pensar em coisas boas, não sei explicar direito...

- É a mulher mais bonita que eu já vi até hoje! - Beto exclamou, convicto.

- É... Guto estava pensativo. Parecia ver aqueles olhos bem diante dele.

Os dois meninos não sabiam identificar o sentimento, mas estavam apaixonados. Perdidamente apaixonados por uma mulher que, na verdade, era um anjo. Literalmente.

- Quero vê-la mais uma vez antes dela ir embora, Guto!

- Pô, eu também, mas você prestou atenção no que ela falou? Aquele tal de Demetrius é barra pesada, meu. Se ele nos acha no meio do mato com ela, pode matar a gente! - Guto tentou impor firmeza na voz, mas não obteve sucesso.

Ele também queria ver Laureanna mais uma vez. Pelo menos mais uma vez.

Os dois se entreolharam.

- Você tem lanterna em casa? - perguntou Guto.

- Eu não, mas meu pai tem uma das grandes na garagem. Ele usa quando vai pescar. - Ei, está pensando em...

- Voltar lá, e me despedir da Laureanna.

- Você tá louco! Pirou o cabeção de vez?

- E você? Não gostaria de dar um último beijo antes dela partir?

Beto engoliu em seco. Seus olhos brilharam.

- Onde? A que horas? - perguntou a Guto.

- Na ponte, quando o sol sumir atrás das montanhas.

- Isso pode ser perigoso! - o medo se insinuava na voz de Beto.

- Se você não estiver lá, eu vou sozinho. Com lanterna ou sem! - afirmou Guto.

Beto pensou em Laureanna, e no desejo ardente de vê-la mais uma vez.

- Na ponte. Combinado, então! - falou para Guto.

- Não se esqueça da lanterna. E veja se têm pilhas.

- Tá legal. A gente se encontra lá.

- Beleza!

Beto subiu em sua bike, e mal havia ele chegado à primeira esquina, Guto ouviu a mãe chamando-o.

Com o coração aos pulos dentro do peito entrou em casa, procurando disfarçar o que sentia.

18:02 h. Os últimos raios de sol tingem de laranja e vermelho as nuvens.

18:10 h. O manto negro da noite cobre esta parte do globo.

18:21 h. A lua aparece no céu, como uma moeda de prata.

Um vulto passa sobrevoando a cidade de Eldorado, porém sem ser visto por ninguém.

Anjos só podem ser avistados por mortais quando estão fracos demais para se tornarem invisíveis, ou quando desejam fazer contato.

E nenhum dos dois casos se aplica ao ser que corta o céu noturno sobre a cidade, em questão de segundos.

Laureanna desperta assustada.

O interior da cabana está totalmente às escuras. Do lado de fora, a luz da lua ilumina o pátio. Um vaga-lume solitário entra por uma das janelas, pulsando com seu brilho esverdeado, mas ela nem sequer o nota.

Seu primeiro pensamento foi que havia dormido demais. O seguinte foi que devia partir dali imediatamente.

Então ouviu passos na mata fechada. Passos leves, de pés pequenos.

- Os meninos. Estão de volta! - gemeu baixinho.

Ia sair e dizer para que voltassem de onde estavam, mas parou em pé ao lado da cama. Colocou a mão na têmpora direita, onde vibrava um alerta.

Mas alguém mais se aproximava! Estaria ali em questão de segundos!

- Oh, Senhor, não, por favor, eu sinto a presença maligna dele muito perto.

- Laureanna? - voz de um dos meninos. Beto.

- Viemos nos despe... - começou Guto, mas não conseguiu terminar a frase.

- NÃO! - gritou Laureanna da porta. - Afastem-se daqui! Ele está chegando!

Os dois estacaram no limite entre a mata e o pátio despido. Beto trazia nas mãos uma lanterna grande, que lançava um feixe de luz fortíssimo sobre a casinha.

Então um clarão que suplantava a luz da lanterna iluminou o pátio e a casa, cobrindo-os de um tom vivo alaranjado.

Os meninos olharam para cima.

Uma bola de fogo, mais ou menos do tamanho de um fusca se precipitava sobre a casinha. Laureanna olhou para cima. Tudo aconteceu em frações de segundos.

Os dois gritaram o nome dela.

Laureanna se encolheu para dentro da casa.

A bola de fogo atingiu a construção em cheio, causando um clarão ofuscante, e uma explosão que sacudiu o ar.

Os meninos gritaram novamente.

Em meio às chamas que lambiam a casinha, viram, quase sem acreditar, Laureanna alçando vôo através do telhado. Ela atravessou as vigas e telhas, rompendo-as como se fossem de papel!

Subiu uns trinta metros acima do fogo e parou em pleno ar, batendo as asas graciosamente. Tinha os punhos crispados, e olhava fixamente para algo atrás e acima dos meninos.

- Escondam-se! - ela gritou para eles. - Saiam daqui!

Dessa vez eles obedeceram ao pé da letra. Beto jogou a lanterna longe, e ele e Guto se enfiaram entre as árvores, ferindo-se em vários lugares.

Por fim, esconderam-se debaixo de um tronco caído, de onde tinham uma boa visão do pátio da olaria. Respiravam como dois atletas em final de corrida.

Uma voz arrepiante trovejou um pouco à frente de onde estavam:

- Laureanna! - Você vai voltar para junto dos seus. Agora!

Outro clarão. Uma segunda bola de fogo partiu para cima de Laureanna, que executou um lindo "looping" no ar, desviando-se. A bola explodiu na mata atrás da casa, principiando um incêndio.

Beto e Guto se agarraram um ao outro, apavorados.

Estavam presenciando uma batalha celestial: um anjo corrompido, e sua oponente.

Laureanna olhava fixamente para o renegado, cuja trilha ela seguira durante meses. Uma mudança brutal já se operava nele.

Suas asas haviam se tornado de um tom cinza-sujo; os olhos adquiriram um brilho de réptil, e ele havia se tornado maior. Mais forte. As unhas estavam longas e negras, como garras. Uma aura de maldade exalava de seus poros, como gás venenoso. E o rosto se retorcia em uma carranca monstruosa, em nada lembrando o belo rapaz de cabelos ruivos que fora um dia.

- Eu voltarei, Demetrius. Mas você virá comigo!

- Nunca! - o renegado emitiu um urro, e avançou sobre ela.

Mas, ao invés de desviar, ela fechou o punho direito e esperou, mantendo-o junto ao corpo.

Quando Demetrius chegou perto o bastante, ela projetou o punho para frente, atingindo um potente soco no rosto deformado de seu inimigo. O som foi como o de uma marreta atingindo um bloco de concreto sólido!

Demetrius foi lançado com brutalidade para trás, girando sem controle.

Laureanna não esperou. Impulsionou as asas poderosas para frente, e atingiu-o novamente, desta vez no estômago.

O terceiro soco acertou o queixo de Demetrius, e este entrou em queda livre. Ouviu-se um som de galhos se partindo, e em seguida o de um corpo atingindo o chão com força.

Laureanna tocou suavemente o solo com os pés nus, e caminhou até o local onde o renegado caíra.

Demetrius se levantava vagarosamente, sentindo fortes dores. Mais fortes do que a queda que sofrera justificaria, espantou-se.

O que estaria acontecendo?

Laureanna parou diante dele. Não sentia alegria alguma no sofrimento do inimigo. Pelo contrário, seu coração puro se enchia de dor. Ela era incapaz de odiar, quem quer que fosse.

Os dois meninos se adiantaram um pouco, rastejando para tentar ver melhor o que estava acontecendo.

Nesse momento, presenciaram uma coisa espantosa (mais uma, aliás):

Laureanna estendera o braço, e uma forma começara a tremeluzir em sua mão.

Então, uma espada se materializou diante do olhar incrédulo deles!

A lâmina comprida reluzia como prata, e o cabo na mão de Laureanna parecia ouro puro, à luz do luar.

Por um momento, as chamas que ardiam no outro extremo do pátio se refletiram na lâmina, tornando-a rubra como sangue. Ela ergueu a espada, e apontou-a para Demetrius.

- Venha em paz comigo, Demetrius! - ela falou. - Sua alma ainda pode ser salva. Mas deve arrepender-se de todo o coração, e rogar perdão ao Criador.

Para espanto da própria Laureanna, o renegado começou a rir.

Laureanna empunhou a espada com as duas mãos, mantendo-a diante do corpo.

- Demetrius, eu lhe imploro, por tudo que é mais sagrado. - sua voz estava carregada de tristeza. - Volte comigo, em paz.

Súbito a escuridão pareceu saltar sobre ela, em meio a rosnados pavorosos que encheram a noite.

Guto e Beto viram do que se tratava, e não suportaram mais. Sentiram suas bexigas relaxarem, e molharam as calças.

Dois lobisomens se atiraram sobre a mulher; um deles agarrando seus braços, e o outro cravando os dentes em sua coxa esquerda!

O peso combinado dos dois a jogou de costas no chão.

Demetrius deu um grito, antecipando seu triunfo!

Os meninos também gritaram, mas temendo pela vida da amiga.

Laureanna conseguiu soltar as mãos, e agarrando as cabeças dos monstros, bateu-as uma contra a outra, despedaçando-as.

Os lobisomens tombaram pesadamente para os lados, mortos.

Sua coxa queimava como fogo. Ela olhou para baixo, e viu o sangue brotar em abundância do ferimento!

Ela abaixou-se para retomar a espada, mancando. Quando fechou os dedos sobre a empunhadura, algo duro atingiu-a com violência no queixo, fazendo-a desequilibrar-se. Um segundo golpe a derrubou novamente ao chão, sobre o sangue impuro de um dos lobisomens mortos.

Laureanna ergueu-se em seguida, ainda atordoada, mas duas mãos poderosas fecharam-se sobre sua garganta e seu punho direito. Ela sentiu uma força incrível esmagando-o, e acabou deixando a espada cair outra vez. Então foi a vez da pressão em sua garganta aumentar brutalmente, enquanto o outro a suspendia do chão.

Demetrius, já recuperado, mantinha seu rosto a menos de dez centímetros do dela, fitando-a com ódio vivo nos olhos amarelos. Ele ria com os dentes cerrados, e as veias em seu pescoço e testa saltavam, à medida que ela aplicava mais e mais força, estrangulando-a.

- Adeus, minha bela. Dê minhas lembranças a seus amigos, Natanael e Balthazar, quando encontrá-los.

Laureanna sentia sua consciência se esvair. Em segundos seria lançada de volta ao plano espiritual. Falharia em sua missão, assim como os outros falharam antes.

E Demetrius estaria livre para expandir seu poder, e unir-se a outras criaturas infernais. Talvez ao próprio Lúcifer!

Reunindo o que restava de suas forças, ela ergueu as mãos diante do rosto, e enterrou os polegares nos olhos de Demetrius. Este emitiu um uivo de dor, e soltou-a, cambaleando para trás.

- Meus olhos. Ah, sua cadela maldita! Meus olhos!

Laureanna caiu de joelhos, esforçando-se para respirar. As trevas ameaçavam tomar conta de sua mente.

Tocou a base do nariz. Retirou a mão, os dedos vermelhos. Sangrava em dois lugares, agora!

Então veio a compreensão.

Quanto mais tempo permanecia no plano terrestre, mais sujeita à suas leis se tornava.

Ela estava se tornando mortal.

Assim como seu inimigo.

- Estou cego! - Demetrius gritou, o rosto uma máscara de sangue - Como? Como é possível?

- Estamos nos tornando vulneráveis neste plano, Demetrius. Nos tornando mais próximos dos homens.

- É que você pensa, sua desgraçada. Eu não posso vê-la com os olhos, mas posso vê-la com minha mente. E vou terminar o que comecei!

- Que seja feita a vontade de Deus! - Laureanna exclamou, recuperando sua espada.

Em meio à violência daquele combate, Guto teve um pensamento doido: quando conheceram Laureanna, nem água nem sujeira de qualquer tipo aderia ao corpo dela, ou às roupas.

Agora ela estava coberta de sangue e terra. Suas asas impecavelmente brancas tornavam-se encardidas, e ela se movia com dificuldade.

Seria possível um anjo morrer?

Demetrius ergueu o braço estendido sobre a cabeça, e uma espada materializou-se em sua mão. Imediatamente, a arma irrompeu em chamas.

- Guto! Olhe lá! - gritou Beto. - Ele também tem uma espada!

- Ai, meu Deus, ai meu Deus, repetia Guto. - Por favor, não deixe ela morrer, Senhor!

Sentindo-se cada vez mais fraca, Laureanna retesou o corpo, preparando seus músculos para um novo confronto. Sua perna enviava espamos de dor, mas ela os ignorava. Tinha que manter concentração total em seu feroz oponente, ou tudo estaria perdido.

Inclusive sua alma.

Então, Demetrius atacou!

No instante em que ele se lançou contra ela, Laureanna bateu as asas com vigor, e lançou-se bem acima das copas das árvores; pretendia afastar o duelo o mais que pudesse das crianças, que estavam paralisadas de medo, indefesas.

Demetrius alçou vôo também, gargalhando loucamente.

- Enfrente-me, covarde! Aceite seu destino!

Ele subiu mais alto que ela, e começou a descrever uma trajetória descendente.

A lâmina flamejante abateu-se com incrível força sobre Laureanna. Ela bloqueou o primeiro golpe, sentindo os músculos e ossos vibrarem, dos dedos até os ombros. O calor daquele fogo infernal queimava-lhe o rosto.

Arquejando, ela libertou sua espada, e mirou um golpe no pescoço.

Habilmente, Demetrius interrompeu a trajetória da lâmina. Laureanna vislumbrou uma brecha, e atingiu-o duramente com a parte posterior do cabo da espada. Ele balançou para trás, e ela atacou de novo.

Com rapidez sobrenatural ele se recompôs, e bloqueou o ataque dela. Começaram a medir forças, ela pressionando para baixo, ele para cima.

Do chão, os meninos observavam os dois fantásticos combatentes. O som das lâminas se chocando ecoava pelo ar, e penetrava nos ouvidos deles como agulhas!

Então Demetrius acertou um violento chute no seio esquerdo dela, que perdeu momentaneamente o fôlego. Por um instante, não conseguiu respirar. A dor foi terrível, e ela pensou que ia perder os sentidos. Atacou cegamente, e a lâmina só cortou o ar. Demetrius aproveitou-se do momento de confusão de sua adversária, e mirou o ponto entre as sobrancelhas dela. Baixou a lâmina com as duas mãos, e Laureanna só conseguiu bloquear o golpe a milímetros de sua pele. As chamas da espada, porém, queimaram-lhe um lado do rosto, e parte dos cabelos.

Ela soltou um grito de dor, e plantando os dois pés no peito de Demetrius, impulsionou-se para longe dele, batendo as asas furiosamente! Seu inimigo, porém, não pretendia dar-lhe nenhuma chance para se recuperar, e partiu velozmente atrás dela.

- Laureanaaa! - gritaram os meninos ao mesmo tempo. - Cuidado!

- Você vai morrer como uma reles mortal, mulher! - gritou o renegado, preparando o golpe final. - E levarei sua alma para o inferno, como oferenda!

Então Laureanna executou um giro no ar, ficando de frente para ele. Segurou a espada com as duas mãos, e empurrou a lâmina para cima, ao mesmo tempo em que Demetrius projetava a sua para frente!

A espada de Laureanna penetrou pela carne mole sob o queixo de Demetrius, e continuou o trajeto mortal, até sair pelo topo de sua cabeça! Imediatamente, sangue jorrou dos buracos onde estiveram seus olhos!

Ao mesmo tempo, a lâmina em chamas perfurou o estômago de Laureanna, trespassando-lhe o corpo. Ouviu-se um terrível som de chiado, e uma nuvem de vapor ergueu-se em torno dela.

Os dois formidáveis oponentes pairaram no ar durante algum tempo, ainda agarrados à suas armas, as asas batendo espasmodicamente, até pararem de vez.

Então, se soltaram e desabaram do céu.

Beto e Guto viram tudo como se fosse em câmera lenta. A queda dos dois anjos pareceu durar vários minutos, e não apenas alguns segundos.

Demetrius, mais pesado, atingiu o solo primeiro, levantando uma nuvem de poeira. Seu corpo resvalou e rolou de lado, a espada de Laureanna ainda enterrada em seu crânio.

Ela, por sua vez, caiu sobre a copa de uma árvore, ficando presa nos galhos mais baixos. Livre da mão que a empunhava, a espada não mais ardia em chamas.

- Laureanna, nãão! Nãão! - Guto e Beto corriam até onde a amiga caíra, gritando e chorando. Não podiam acreditar no que viam. Ela não podia morrer, não podia!

Pararam debaixo da árvore. O sangue pingava vagarosamente agora do ferimento na perna, e começava a formar uma poça debaixo dela. Uma das asas ficara presa em um galho, e apontava para o céu estrelado. Os lindos olhos azuis estavam fechados; o rosto que enfeitiçara os coraçõezinhos dos dois meninos estava cruelmente queimado. A perna direita pendia frouxa, os dedos do pé apontando para a terra. A espada de Demetrius fora enterrada até o cabo em seu estômago, as bordas cauterizadas pelo fogo.

- Vamos tirar ela daí, Guto! Vamos tirar ela daí! Ela não morreu, ela não morreu, só está desmaiada... - Beto falava entre soluços, apegando-se desesperadamente a uma última esperança.

Guto tentava se controlar, mas um choro convulso sacudia seu corpo também.

- Beto... Beto, não adianta... mais. Ela... ela m-morreu! Ela morreu!

Beto caiu de joelhos, puxando os cabelos louros furiosamente, até saírem mechas em suas mãos. Guto ajoelhou-se na frente dele, e o abraçou, tentando acalmá-lo.

Nesse momento uma luz fortíssima iluminou aquele cenário de horror, transformando a noite em dia!

- O que? - Guto exclamou.

Beto olhou para cima, os olhos inchados de lágrimas, as mãos cheias de tufos de cabelo ensangüentados.

- Vem do céu! - ele conseguiu dizer.

Os dois ficaram em pé. A luz era tão forte que mal dava para olhar para ela, mas mesmo assim os dois avistaram dois vultos vindo através dela.

Vultos com asas!

- Afastem-se, crianças. - uma voz masculina soou.

- Temos um trabalho a fazer. - o outro vulto falou.

Os meninos caminharam para trás, obedientes. As vozes eram calmas, mas havia um tom de comando irresistível nelas.

A luz foi diminuindo, até se extinguir. E então Guto e Beto puderam ver. E a esperança voltou a seus corações.

Dois anjos estavam de pé, sob o corpo inerte de Laureanna. Um era negro, e careca como Michael Jordan; o outro era branco, de longos cabelos castanhos. Eram muito altos. Usavam um traje muito semelhante ao de Laureanna, mas traziam sandálias de couro nos pés, e uma espécie de colete cobria-lhes os troncos avantajados.

Guto não teve dúvidas sobre quem eles eram: Natanael e Balthazar.

Aproximou-se dos dois, e pegou a mão enorme do anjo calvo. Apertou-a, e mais lágrimas desceram de seus olhos.

- Salve ela. - a voz de Guto era quase um lamento. - Vocês são anjos também, salvem a vida dela, por favor.

O anjo cuja mão Guto segurava, e que se chamava Natanael, pousou a outra mão sobre a cabeça do menino, e acariciou-lhe os cabelos. Sorriu para ele.

- Estamos aqui justamente para isso, filho. - disse o anjo. - Nosso Senhor Jesus Cristo em pessoa nos enviou de volta.

Dizendo isso, ambos se aproximaram do corpo devastado de Laureanna. Cuidadosamente, como quem manuseia um vaso muito frágil e precioso, retiraram-na dos galhos que a prendiam.

- Ah, Laureanna. Ah, minha querida. Você sempre foi a mais valorosa entre nós. E mais uma vez você provou isso. - foram as palavras de Natanael.

- Vamos nos apressar, Natanael. - disse Balthazar. - Sinto apenas um leve sopro de vida em seu corpo. Se não agirmos logo, sua alma pode se perder no limbo!

- Que assim seja. Pela vontade de Deus Pai-Todo-Poderoso!

Com um único puxão, a espada foi arrancada do corpo de Laureanna. Nenhuma gota de sangue verteu. No instante seguinte, a arma vaporizou-se na mão de Natanael.

Beto e Guto acompanhavam tudo a pouca distância, os olhos muito arregalados, o coração quase saltando pela boca. Pareciam tão chocados, que não conseguiam sequer chorar. Apenas...olhavam. E em suas mentes, rezavam pela amiga.

Os dois anjos puseram Laureanna deitada de costas, com as asas estendidas.

Então debruçaram-se sobre ela, e cada um por sua vez a beijou na testa, carinhosamente.

Em seguida, puseram as mãos sobre seus ferimentos, e fecharam os olhos, murmurando preces ao Criador. O idioma, incompreensível para os dois meninos, foi aumentando de intensidade e volume. As palavras saíam em torrentes, hipnotizantes!

Foi quando uma luz começou a brilhar no peito de Laureanna, a princípio timidamente, depois cada vez mais forte. Natanael e Balthazar continuaram a rezar, impondo as mãos sobre o corpo dela.

- Olhe! - gritou Beto, protegendo os olhos do clarão. - Olhe a mão dela!

Guto olhou, e viu que os dedos dela se moviam.

- Ela está viva! - os meninos gritaram. E, como se em resposta, uma coluna de luz ergueu-se da mulher, e em um segundo atravessou as nuvens. Ouviu-se um trovão potentíssimo, que fez vibrar o chão, e obrigou os meninos a tapar os ouvidos com as mãos.

Então a coluna de luz recolheu-se, e tudo ficou escuro novamente, exceto pelo brilho fantasmagórico da lua.

Laureanna abriu os olhos lentamente. Uma inspiração profunda passou por entre seus lábios entreabertos. Os dois anjos a sentaram cuidadosamente.

- Natanael? Balthazar? - ela sussurrou. Seu rosto estava belo como antes.

- Bem-vinda de volta, doce Laureanna. - disse Balthazar, e a beijou novamente na testa. Havia tal respeito e reverência nesse gesto, que chegava a comover. Natanael o imitou. - O céu está em júbilo com você, querida Laureanna. Você destruiu o mal que envenenava a alma de Demetrius.

Ela sorriu, olhando ora nos olhos de um, ora nos olhos do outro.

- As crianças... meus pequenos amigos. Estão bem?

Natanael sorriu. Um sorriso bem humano desta vez.

- Acho que eles estão ansiosos para vê-la. Venham, meninos! - ele chamou, gesticulando para que se aproximassem.

- Meus queridos. - ela disse baixinho.

O despertador soou impiedoso, seu bip-bip-bip entrando no cérebro de Beto como uma broca!

Com um tapa, ele o atirou longe. O relógio bateu na parede, e se espatifou no chão.

- Ai, que dor de cabeça! - exclamou. Que bosta de despertador! Saco!

- Beetooo... ouviu a voz da empregada, Lurdes, chamando. Hora de ir para a escola. Levante, que seu café já está pronto.

- Já vou! - ele gritou de volta.

Caramba, sua cabeça estava doendo para valer! E sentia-se zonzo de sono, como se tivesse dormido apenas alguns minutos noite passada.

- Aquele sonho... nossa, parecia tão real. Caramba!

A quilômetros dali, Guto despertou de mau humor e com dor de cabeça. Sua mãe perguntou se ele queria ir para a escola, e ele disse que sim.

Precisava ver Beto, e contar o sonho mais louco que teve em toda sua vida!

SEIS MESES DEPOIS, INÍCIO DE MAIS UM ANO LETIVO...

Guto conseguira uma bolsa de estudos integral, e a partir daquele ano estudaria no mesmo colégio particular que seu melhor amigo.

Feliz e ansioso, ele estava sentado nos degraus da entrada do colégio, esperando Beto chegar. Não demorou muito, e o Audi do pai de Beto parou em frente à escola. Ele acenou para Guto de dentro do carro, que retribuiu o gesto. Beto beijou o pai, e saltou do carro.

- Fala Guto.

- E aí, Beto? Beleza?

- Ansioso para começar as aulas?

- Um pouco. É, só um pouco.

Ficaram um minuto em silêncio. Crianças e adolescentes passavam por eles, subindo e descendo as escadas, animados e barulhentos.

- Você ainda lembra daquele sonho? - perguntou Beto, sem motivo aparente.

- Se lembro. Parece que foi ontem.

- Foi tão real.

- É, foi sim. Muito real.

- Sem contar que nós dois tivemos o mesmo sonho. Isso foi sinistro!

- Oi, meninos.

Os dois viraram a cabeça lentamente, para ver de onde vinha aquela vozinha doce.

Parada a alguns passos de distância, e segurando os livros à frente do corpo, estava uma linda garota de seus treze ou catorze anos. Tinha cabelos negros curtos, e olhos azuis da cor do céu. E era mais alta que eles.

- Podem me informar onde fica a Diretoria?

Os dois meninos se entreolharam, depois olharam de volta para a figura absolutamente deslumbrante diante deles, sorrindo daquele jeito que eles nunca conseguiram esquecer.

- Meu nome é Laura. E o de vocês? - ela perguntou, com sua voz musical.