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25 de mar. de 2010

CARTA DE UM LOBO

Aparecida, 11 de julho de 2006.

Meu nome é Charles, tenho vinte e dois anos, e escrevo esta carta porque estou prestes a dar cabo de minha vida, e quero que as pessoas saibam o porquê, embora eu duvide que a maioria delas acredite nesta história.
Sou um lobisomem. É isso mesmo que você leu: eu, Charles dos Santos, brasileiro, solteiro, sou um lobisomem. Não acredita? Então leia a história até o final (da carta e o meu), e talvez mude de idéia.
Minha desgraça começou no dia dezessete de setembro de dois mil e cinco, mais precisamente às quatro e meia da madrugada de domingo. Como de costume, voltava da balada com alguns amigos (tínhamos ido ao Manguetown, havia uma banda de Rock nova se apresentando por lá). No final das contas, a banda era uma bosta, mas o lugar fervia de menininhas, e não foi difícil conseguir ficar com uma delas, uma loura espetacular, com os seios mais lindos que eu já vira em toda minha vida. Infelizmente, o negócio parou por aí, pois não tenho carro, e minha amiguinha não se animou de sair a pé para encontrar uma moita onde pudéssemos... como direi? Nos conhecer mais a fundo. Terminei a noite "chapado" de cerveja e sozinho, mas tudo bem. Foda-se, pensei!
Saímos do lugar, e meus amigos me deixaram na rodoviária de Guaratinguetá. Lembro de ter consultado o relógio, e apesar de estar enxergando dois mostradores, vi que eram exatamente 04:29 da matina. O próximo ônibus só sairia dali às 05:30 h, de modo que pensei em procurar um cantinho para dar um cochilo. Mas a vontade de mijar estava muito forte, e apesar da rodoviária estar deserta àquela hora, atravessei a avenida em direção a um córrego que fica na divisa com o bairro Tamandaré. Entrei atrás de um outdoor que tem ali, e depois de me certificar que ninguém estava olhando, abri o zíper. Foi nesse momento que ouvi um rosnado, como se fosse um cachorro grande, e gelei da cabeça aos pés; parece que até o efeito da bebida havia passado, superado pelo medo que emanava do meu cérebro alcoolizado (hoje estou especialmente inspirado para escrever, acho). Senti uma dor na bexiga quando a contraí de susto (apenas algumas gotas chegaram a cair no chão). Enquanto fechava o zíper olhava para todos os lados, tentando localizar o bicho. Minha cabeça girava.
O rosnado se repetiu, e parecia vir de todos os lados ao mesmo tempo. Dei dois passos para trás, tropecei num cano ou coisa parecida, e caí de bunda no chão. Foi então que eu vi!
Uma coisa grande e preta saiu se arrastando debaixo da ponte. E era essa coisa que rosnava e babava (a baba parecendo fios de prata à noite – eu disse que estava inspirado), fitando-me com horríveis olhos vermelhos. Imaginei ser um Rottweiller ou um Pastor Alemão, mas logo percebi que aquilo era grande demais para ser um cachorro. E tinha pêlos demais para ser algo humano. Concluí então, num lampejo de lucidez, que só podia se tratar de uma coisa...
Já contei que tenho pavor de cachorros? É um daqueles traumas de infância, sabe. Quando eu tinha seis anos, fui atacado por um vira-latas, e ganhei seis pontos no braço direito. Tenho a cicatriz até hoje para provar. Desde então estremeço se vejo um cachorro vindo para o meu lado. Mas aquela coisa não era um cachorro, era algo muito, mas muito pior.
Vi os faróis de um carro se aproximando, e tentei levantar para pedir socorro. Mas tropecei de novo no maldito cano, e caí de cara no chão. Os faróis passaram, o motorista nem me viu; ou talvez tenha visto algo bastante comum: um bêbado caído no meio do mato.
Levantei o rosto sujo de grama, e nesse momento senti mãos enormes agarrando meus calcanhares. Cara, naquele instante eu não segurei mais: molhei as calças, e não tenho vergonha de dizer. Mesmo alguém que não tivesse bebido tanta cerveja quanto eu molharia as calças naquela situação, se entendem o que quero dizer. Fui arrastado para baixo da ponte com uma força incrível. Gritei até sentir a garganta arranhar, mas ninguém apareceu. E se alguém na vizinhança ouviu meus gritos, tratou de fazer o sinal da cruz e se enfiar o mais fundo possível debaixo das cobertas.
O que aconteceu em seguida está meio nublado em minha mente. Lembro-me de ouvir meus gritos misturados ao rosnado daquela besta, enquanto eu chutava o vulto negro com as duas pernas, a esmo, tentando me libertar.
Então senti uma dor terrível, quando fui mordido na panturrilha esquerda. Algo quente se espalhou por minha perna, mas naquela escuridão eu não via o sangue. Então parei de lutar, fechei os olhos e esperei pela morte certa.
De repente o demônio parou, e farejou o ar. Sem mais nem menos, virou-se de costas e desatou a correr. Parou e olhou para trás uma única vez, como que para lamentar a refeição perdida, e desapareceu na noite. Ouvi um tiro, logo seguido de outro. Os tiros, assim como a criatura, se afastavam cada vez mais. Nunca soube quem havia atirado, nem procurei saber! Olhei para os farrapos em que se tornaram minhas roupas, e todo aquele sangue, e apesar da dor que me queimava a perna como fogo, eu pensava na desculpa que eu daria a minha mãe, quando chegasse em casa.
Minha mãe, Selma, é viúva. Meu pai morreu já faz uns vinte anos, de modo que não lembro quase nada dele. Acho que assim é melhor, você parece não sentir tanto a perda. Ela é uma católica fervorosa. Reza o terço todas as noites, e vai a Basílica todos os domingos. Às vezes assiste duas missas seguidas. Não sei como ela agüenta! Eu nunca fui muito chegado em religião, na verdade. Ela me arrastou para a igreja enquanto pôde; aí eu me tornei grande demais para ela, e mamãe desistiu. Mas volta e meia eu ouvia um sermão sobre ir à missa, confessar, etc, etc.
Pensei bem, e cheguei à conclusão que não haveria grandes problemas. Eu iria até o Pronto Socorro da Santa Casa, que era perto dali, e diria que fui atacado por um cachorro. Levaria alguns pontos, depois me perguntariam se eu conhecia o animal, e eu diria que sim. Então me mandariam vigiá-lo, e se ele morresse num prazo de dez dias, eu deveria ser vacinado contra raiva. E eu contaria exatamente a mesma história, sem tirar nem pôr, para minha mãe. Provavelmente – com certeza, aliás – eu iria ouvir outro sermão sobre ser mais responsável, dormir mais cedo, não ficar perambulando à noite sozinho, e todas essas coisas que as mães dizem aos filhos quando se preocupam com eles. Eu gostava de minha mãe, sempre gostei, e sinto muito por seu sofrimento ao ler esta carta, mas devo isso a ela, quero dizer, a verdade. Minha mãe vai saber porque seu filho único se matou, para que não se sinta culpada por nada. Aliás, acho que ninguém tem culpa: as coisas simplesmente vão acontecendo, e algumas vezes fogem do nosso controle, é isso. Aliás, isso não tem a menor importância agora. O que importa mesmo é o que aconteceu depois daquela noite.
Assisti uma vez a um filme com o Jack Nicholson e a Michelle Pfeiffer, em que um cara (o próprio Jack) era atacado por um lobisomem, e sentia dia a dia seus sentidos se tornarem mais aguçados, sua força física ir aumentando de modo espetacular. Comigo não aconteceu nada disso. O que posso concluir? Que os roteiristas de Hollywood são uns bons mentirosos! Eles enfeitam as coisas, para ficarem mais atraentes para o público. Bem, no filme da minha vida, as coisas correram um pouco diferentes, sem o mesmo "glamour" da tela. E eu também não transava com a Michelle Pfeiffer, entende? Nessa época, graças a Deus, eu não tinha nem namorada fixa. Isso tornou as coisas mais fáceis, suponho. Quero dizer, os sumiços em noites de lua cheia, acordar pelado no meio do mato com o sol na sua cara, essas coisas. Acho que o pior eram as manchas de sangue coagulado. Até hoje não sei como sempre conseguia chegar em casa sem chamar a atenção. Astúcia de lobo, talvez?
Mas estou "pondo o carro na frente dos bois", como se diz por aqui. O caso é que, no dia seguinte ao ataque, cheguei à conclusão que nenhuma vacina iria adiantar se eu tivesse contraído algo daquela coisa medonha. Só conseguia pensar em uma coisa: o que aconteceria comigo na próxima noite de lua cheia?
Minha mãe foi viajar para visitar uma tia doente, e prometeu que voltaria na quinta-feira sem falta. Fui com ela até a rodoviária. Antes de embarcar, me deu um beijo de despedida, e ficou me olhando preocupada, como se adivinhasse que eu ia fazer alguma besteira. Disse a ela que estava tudo bem, que eu ia me cuidar. Tinha muita matéria para estudar, o que era verdade, mas nunca cheguei a abrir minha apostila outra vez. Nem abrirei outra de novo. Melhor não pensar nisso, senão posso me arrepender e voltar atrás em minha decisão. E não pode haver volta para mim, de jeito nenhum!
Interrompo a carta por um instante, e abro a gaveta do criado ao lado da cama. Retiro o revólver calibre trinta e oito (trezoitão, na gíria dos marginais) da marca Taurus de dentro dela. Está enrolado numa flanela, e cheira a óleo e pólvora. Desenrolo a arma e fico admirando-a, virando-a de um lado para outro nas mãos. Apesar de minha determinação, sinto um calafrio percorrer minha espinha, e volto a guardá-la na gaveta. Percebo que esqueci a flanela, e ao invés de enrolá-lo como antes, apenas jogo a flanela sobre o trezoitão, e bato a gaveta. Mais tarde, pensei. Mais tarde...

Estava cursando Informática no Coteca, um bom colégio técnico aqui de Aparecida, onde moramos. A quem interessar possa, meu endereço atual é Rua Padre Gebardo, 1111. Não creio que ninguém vá se interessar, mas fica registrado para a posteridade, por assim dizer. Se a história for parar nos jornais, as vizinhas terão muito assunto para fofocar. Vão dizer: "Eu morava ao lado de um assassino (sim, porque ninguém vai ter coragem de usar a palavra lobisomem), e nunca desconfiei. Se bem que sempre achei aquele rapaz meio esquisito..."

Vão para a puta que o pariu, cambada de fofoqueiras! Ainda vão acabar mordendo a língua e morrendo envenenadas, isso sim. Mas estou me desviando da história.

Depois do ataque daquela linda noite de verão de dois mil e cinco, minha vida voltou ao normal, pelo menos em parte. Meu ferimento cicatrizou bem, e continuei com meu emprego de ajudante de supermercado. À noite ia para minhas aulas de Informática. Descobri uma certa afinidade com computadores, e passei a gostar disso. Fazia bicos nos finais de semana, instalando programas ou consertando computadores de amigos. Agora, escrevendo esta carta, e vendo as palavras fluírem com tanta facilidade, acho que devia ter tentado a faculdade de letras.
E os dias foram passando, e as noites logo em seguida, como tinha de ser. Eu olhava para a cicatriz em minha perna, em busca de um sinal qualquer, mas nada. Olhava para minhas mãos, meu rosto, meus dentes, e tudo continuava igual. Nenhuma transformação visível, lamento Jack Nicholson! Assim, depois de algumas semanas, aquela noite pavorosa começou a parecer um pesadelo distante. É isso que fazemos com as lembranças ruins, não é? As varremos para debaixo do tapete, e procuramos não tocar mais nelas.
Até que a lua cheia chegou novamente...

Lembro-me que naquela noite estava sozinho em casa, e tive febre. Lembro também de ter pensado: Será que é assim que começa? Olhei pela janela e vi a lua cheia, amarela e doentia se elevar no céu. Fiquei arrepiado! Corri ao armarinho do banheiro e peguei o frasco de Tylenol. Despejei quarenta gotas num copo, pus um dedo de água e engoli. Deitei no sofá com aquele gosto horroroso na boca e comecei a me sentir sonolento. Meia hora depois de tomar o remédio, adormeci.
Sonhei com uma alcatéia de lobos correndo pela neve. Um deles interrompeu a corrida e olhou para mim. Em seguida soltou um uivo longo e doloroso. Olhei para os olhos do lobo, e vi que vertia sangue deles! Acordei apavorado, a roupa encharcada de suor. A febre tinha passado. Tentei ver as horas no aparelho de vídeo cassete, mas o mostrador só ficava piscando 00:00, em frios números azuis. Olhei para meus braços. Nenhum pêlo a mais. Se não fosse totalmente bizarro, poderia dizer-se que eu estava um pouco decepcionado!
Peguei o controle remoto, pensando em ficar pulando de canal em canal, pra ver se achava alguma coisa que prestasse na televisão. E foi então que senti a dor!
Começou na nuca, como se tivessem enfiado um prego quente nela. Antes mesmo de eu levar a mão até o local, a dor se espalhou pela minha coluna abaixo, e pareceu terminar na virilha. Bem, terminar é um jeito de dizer, porque na verdade aquilo foi só o começo. Caí deitado no sofá, encolhido como se tivesse levado um chute nas partes baixas. Depois a dor começou nas costas de novo, aí fiquei esticado como uma vara. Em seguida todo meu corpo começou a se contrair violentamente, e acho que gritei.
Como descrever o que veio em seguida? Senti meus músculos rasgando (do jeito que você imaginaria um pano velho rasgando... raaaaaaac!), e uma dor incrível nos ossos. Aí desmaiei, ou acho que desmaiei, não sei direito. A próxima lembrança que tenho é de estar correndo pelo meio do mato, sob aquela luz maldita da lua cheia. Eu lembro que corria e corria, sem saber ao certo para onde. Então me dei conta de algo estranho: eu corria de quatro! Olhei para baixo, e ao invés de minhas mãos, vi duas enormes patas negras peludas, as unhas saltadas. Fiquei apavorado, mas não conseguia parar de correr. Porque eu havia farejado uma presa, e estava atrás dela. Não me perguntem como eu sabia disso, mas eu sabia. Aí veio outro daqueles "brancos", e quando voltei a mim, estava mastigando alguma coisa, e com muita vontade. Parei e tentei avaliar o que estava fazendo. Estava devorando um porco-do-mato, ou coisa parecida, vivo e guinchando! Senti o gosto da carne e sangue frescos em minha boca, e devo admitir que gostei. Olhei para a lua, minha companheira naquela noite tão estranha, e soltei um uivo forte e longo. Acordei na manhã seguinte, no quintal de minha casa, com aquele uivo ecoando nos meus ouvidos. Não demorei a constatar que minha situação era um tanto quanto estranha: estava completamente nu, completamente sujo, e meu corpo todo doía horrivelmente. Comecei a tremer de frio. Levantei-me com dificuldade. O sol começava a apontar no horizonte, devia ser por volta de 06:00 h ou mais. Dirigi-me à porta da cozinha, preocupado que algum vizinho me visse naquele estado. Só então percebi que a porta estava aberta - só uma fresta - e não havia sido arrombada. Entrei e fechei a porta atrás de mim. Girei a chave duas vezes na fechadura. Depois comecei a rir de mim mesmo. O que eu estava tentando manter do lado de fora? O bicho-papão estava dentro de mim agora!
Acho que vocês já imaginaram o resto, não é? Eu estava fedendo, havia carrapatos em meu corpo, terra em meus pés e debaixo das unhas. Oh, sim, e havia sangue, claro. Sangue nas mãos, no peito, até no cabelo! Forcei a olhar-me no espelho. A não ser que eu tivesse participado de um Festival do Ketchup, minha cara estava toda borrada de sangue seco! Foi demais. Vomitei. E de novo. E quando pensei que não tinha mais nada para soltar, vomitei de novo. Me sentia oco, um espantalho ambulante. Adormeci no chão gelado do banheiro. Graças a Deus que minha mãe não acordou (nessa hora eu agradeci pelos calmantes fortes que ela toma para dormir).
Algum tempo depois aconteceu de novo. Só que dessa vez, antes de sair correndo pela noite, eu consegui me arrastar até o espelho do banheiro (minha mãe dormia profundamente em sua cama, como sempre), e o que eu vi refletido ali superou meus piores pesadelos. Porque não era eu, Charles, no espelho. Nem sequer era um ser humano. O que eu vi refletido era negro, cheio de pêlos, com um focinho comprido, olhos vermelhos e dentes enormes.
Bem, se você que está lendo já assistiu a algum filme de lobisomem antes, deve ter feito uma imagem mental do que eu tentei descrever. Pois é, meu amigo, mas por mais doentia que seja sua imaginação, duvido que chegue perto do que eu vi refletido naquele espelho!
Procurei então me controlar o máximo possível, para sair da casa sem fazer barulho. A fera irracional dentro de mim lutava para assumir o controle. E várias vezes conseguia; era quando eu tinha aqueles "brancos".
Resumo da ópera: fui atacado por um lobisomem, e me tornei um deles. Nisso os roteiristas de Hollywood não mentiram: a coisa passa de um para outro, como uma porra de um vírus. A cada noite de lua cheia, eu me transformava, e saía pela noite, para me alimentar. Mas principalmente, pelo prazer de matar!
E sabe que eu e a encantadora criatura que me ferrou nos encontramos outra vez? Mas tarde, quando pensei naquilo, lembrei do título de uma música do Charlie Brown Jr.: "Somos Poucos Mas Somos Loucos". É daquele CD que eu não me lembro o nome, sei que tem uma dentadura dentro de um copo na capa. Bem, enfim...
Lembro de ter farejado (sim, meus sentidos se tornaram mais aguçados também – ponto para o cinema) o outro lobisomem em uma de minhas andanças noturnas. Minha curiosidade humana me levou até ele. Que, diga-se de passagem, era o mesmo daquela noite de setembro, e não pareceu nem um pouco feliz em me ver! Arreganhou os dentes enormes – era um pouco maior do que eu – e avançou. Nos atracamos e rolamos pelo mato, como... bem, como dois cães de briga. Engraçado, não? Mas, apesar do tamanho e de minha pouca experiência como lobisomem, levei a melhor. Consegui mordê-lo no pescoço, e o sangue esguichou na minha cara. Uivei de prazer, dá para acreditar nisso? Sangrando, ele me deu um empurrão, e fugiu a toda, sem olhar para trás. Nunca mais nos encontramos. Sei que parece estranho eu escrever sobre isso com tanta naturalidade, mas acabou se tornando uma parte de mim, sabe? O ser humano se adapta a tudo, imagino eu. E acho que acabei me adaptando à minha vida dupla. Acho até que acabei gostando de meu "alter ego", como se diz nos quadrinhos. A sensação de poder é indescritível, e acaba contaminando a gente. De certo modo, passei a aceitar meu lado lobo, e consegui conviver em paz com ele.

Até o dia em que encontraram a garotinha morta!

Parei de novo. Minha mão está dolorida de tanto escrever. Nunca escrevi tanto e tão rápido em minha vida. Mas é preciso, pois o tempo é curto. Hoje é noite de lua cheia, e já são 17:55 h. Tenho que me apressar, ou não conseguirei fazer o que tenho que fazer.
Mamãe está num curso de bordado, crochê ou sei lá o que, e tudo tem que estar acabado antes que ela volte. Olho para a gaveta do criado, mas não ouso abri-la de novo. Ao invés disso, vou até a cozinha, abro a geladeira e pego um litro de leite. Bebo direto do saquinho, quase meio litro. Arroto ruidosamente. Sinto-me melhor para continuar a escrever. Onde é que eu estava mesmo?Ah, sim a garotinha.

Fiquei sabendo que o nome dela era Priscila, tinha seis anos, e foi tudo o que eu quis saber. Além, é claro, do fato de que ela foi encontrada horrivelmente dilacerada, nas palavras do jornalista que transmitiu a notícia do local. Não me lembro se fui eu que a atacou, mas alguma coisa lá no fundo me diz que sim. Poderia ter sido aquele outro, mas se somei dois e dois com exatidão, era eu quem estava lá quando ela foi morta!
Isso foi demais pra mim, entendem? Uma coisa é sair por aí, uivando para a lua e matando porcos-do-mato, galinhas e capivaras. Outra coisa completamente diferente é matar uma menina de seis anos! E o pior é que a foto dela que mostraram na televisão não sai da minha cabeça: linda, a pele morena, os cabelos cacheados caindo sobre os ombros, o sorriso inocente. Entendam aqueles que porventura lerem esta carta, que não posso mais conviver com a morte daquela garotinha nas minhas costas. É demais imaginar o que ela viu antes de morrer; é demais saber que eu me banhei no sangue daquela criança! E não sou um cara mau, quero que entendam isso. Posso não ser nenhum modelo de cristão, mas acredito em Deus, apesar de não procurá-lo com a freqüência que eu devia. Antes de me tornar o que sou agora, nunca havia matado nem um gato de rua. E agora... isso!

Olho pela janela, o sol já começa a se pôr. Tenho que terminar esse relato agora, e acabar com essa maldita história de uma vez por todas.
Em breve a lua vai estar no céu, e não quero correr o risco de ser responsável pela morte de outro inocente, talvez até de minha própria mãe. Isso jamais! Jamais!

Bem, para terminar, queria pedir perdão à minha mãe, e dizer que eu a amo muito, e esse é mais um motivo pelo qual não posso continuar vivo. Talvez em uma dessas transformações ela seja outra vítima, e eu não posso sequer admitir essa possibilidade. Adeus, mãe, e sinto muito que tenha que terminar desse jeito estúpido, mas a vida às vezes nos obriga a fazer coisas que não queremos. Com um monte de gente é assim, e comigo não foi diferente.

Adeus!

Charles.

Termino a carta, guardo-a no bolso de trás da calça e olho para o relógio. 18:41 h! Minha Nossa Senhora, o tempo passou muito depressa! Tenho que acabar logo com essa merda, antes que seja tarde. A lua logo vai estar alta no céu, e a sua atração vai ser forte demais para eu resistir. Abro a gaveta do criado, tiro o revólver de dentro dela e saio correndo para os fundos da casa. Pulo a cerca, desço o barranco e me embrenho no meio do mato. Aqui está bom! Com um pouco de sorte, vão descobrir meu corpo pela manhã, quando o pessoal sair para trabalhar.
Reviro outra vez a arma em minhas mãos, sentindo o cheiro forte de óleo. Olho para cima, e a lua cheia parece sorrir para mim, um sorriso idiota e vazio. Não posso mais perder tempo, pois já sinto a coisa novamente dentro de mim. Seguro o trezoitão com as duas mãos, os polegares tremendo sobre o gatilho. Enfio o revólver na boca, apreciando agora não só o cheiro, mas o gosto do óleo. Queima minha língua, mas em breve não sentirei mais nada. Encosto a ponta do cano no céu da boca, e me forço a pressionar o gatilho. Meus dedos não respondem. Estou suando em bicas.
É preciso fazer isso seu covarde, então faça logo! Faça antes que a coisa negra dentro de você impeça, antes que...
A dor! Estou me transformando de novo. Eu... eu... (inconsciência)...
Olho para meus braços cobertos de pêlos negros. Minhas unhas estão pontiagudas outra vez. Toco meu rosto: está alongado. Está cada vez mais difícil pensar... onde está o revólver? Ali, encontrei! Se eu conseguir enfiar na boca... (estampido).

(Silêncio)...

A bala atravessou o céu da boca e saiu pela parte de trás da cabeça. Como eu sei? Eu a senti nitidamente durante seu breve trajeto. Pude sentir o palato se rompendo, a bala rasgando meu cérebro, e destroçando a parte de trás do meu crânio. Se doeu? Só um pouco, na verdade. Depois disso tudo ficou vermelho, e apaguei por alguns instantes.
Quando acordei, não senti dor alguma. Toquei a cabeça com minhas longas garras, e estava intacta. O mesmo com a minha boca. O que deu errado?
A transformação, claro. Agora, enquanto corro pelo matagal, tudo fica mais claro. Só uma bala de prata pode matar um lobisomem. E minha transformação já estava muito adiantada quando puxei o gatilho. Agora estou aqui, caçando novamente sob aquele olho vigilante da noite que é a lua, e está cada vez mais difícil pensar.
Não sei se terei coragem de tentar novamente, mas uma coisa é certa: estou farejando carne fresca logo à frente...

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