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3 de jun. de 2010

ANJO CAÍDO

ANJO CAÍDO

Beto pedala com vontade sua bicicleta, uma Mountain Bike Schwin quadro 18 com suspensão "Pro-Shock" novinha em folha, que ganhou do pai há quatro dias, em seu décimo primeiro aniversário.

Para desgosto do menino, na manhã seguinte àquela data, ele despertou com os pingos de chuva tamborilando no telhado. E o que a princípio era uma apenas uma pancada de verão, se transformou num aguaceiro que durou quase dois dias.

Várias ruas da cidade ficaram alagadas, e o trânsito virou um inferno. As aulas na maioria das escolas foram suspensas (bem, alguma coisa boa tinha que resultar disso, pensou o menino), e foi decretado estado de calamidade pública.

Naquelas condições, jamais sua mãe o deixaria sair à rua para estrear sua nova bicicleta. E ele também não estava a fim de colocar aqueles pneus pretíssimos, cheirando a borracha nova, naquele lamaçal em que as ruas se transformaram.

Assim, Beto esperou pacientemente (bem, quase) que o sol voltasse a brilhar. Ia até a frente de sua casa, e através das pesadas grades, vigiava o movimento das retroescavadeiras e dos caminhões da prefeitura. Moradores empurravam a lama de dentro de suas casas com jatos d'água e rodos. Em um só dia, Beto contou dezessete viagens de caminhões carregados de entulho, a maior parte galhos de árvores e destroços de móveis baratos que praticamente se desmancharam em contato com a água. Sua casa ficava na parte mais alta da rua, de modo que não foi atingida pelo avanço das águas do rio Paraíba, que cortava a parte leste da cidade de Eldorado, onde sua família vivia há mais de dez anos. Soube depois pelo noticiário que duas pessoas desapareceram, e mais de trinta famílias ficaram sem teto. A notícia da tragédia daquelas pessoas que ele nem conhecia abalou seu coração de menino.

Mas crianças de onze anos são extraordinariamente flexíveis, e recuperam-se com uma velocidade espantosa de situações que levariam um adulto à depressão.

No terceiro dia após a chuva parar, ele olhou para sua bicicleta novíssima, ainda sem uso, apoiada sobre o descanso em um canto da cozinha.

Contemplou seus aros e guidão cromados, alisou o selim de borracha macia. Então voltou para frente da casa, e continuou ali até escurecer.

Outra coisa aborrecia Beto, além do fato de não poder sair com sua bicicleta nova: era a falta de notícias de seu melhor amigo Guto.

Guto era um menino de origem humilde, e morava em um dos bairros mais distantes do centro, pejorativamente chamado pelas pessoas de "Barrancão". Ele não tinha telefone, de modo que Beto ficou esperando os dias passarem, até que toda a lama tivesse sido removida, e as ruas estivessem livres para ele novamente.

E agora ele pedala furiosamente, suas pernas bombeando os pedais como dois pistões, impulsionando o conjunto todo para frente, sempre em frente!

De sua casa até a casa de Guto são mais ou menos cinco quilômetros, e Beto vai diminuindo essa distância rapidamente.

A brisa fresca batendo em seu rosto suado é maravilhosa, e ele põe toda a força de suas pernas naquele movimento de bombear, a bicicleta oscilando ora para esquerda, ora para a direita, num esforço frenético.

- E se ele morreu? - perguntou para si mesmo, em voz baixa. A idéia fez um calafrio percorrer seu corpo.

- Não! - respondeu a própria pergunta. - Crianças não devem morrer antes de seus pais. Não é... natural (Beto ouviu certa vez sua mãe falando sobre isso com uma vizinha, e guardou essa frase como um mantra sagrado)!

- Além do mais - falava para si mesmo - Se o Guto ou alguém da família dele tivesse morrido, sairia na televisão. Eu ficaria sabendo.

Com esses pensamentos de menino, ele corta as ruas como o vento, sentindo-se praticamente invencível em cima de sua "bike".

Por fim, avista a casinha caiada de branco com janelas e portas azuis, onde moram Guto, sua mãe e seis irmãos (como aquela gente toda cabe em uma casa tão pequena é um mistério para Beto, acostumado desde sempre a ter espaço de sobra em sua casa).

E lá estava Guto, sem camisa, trajando apenas uma bermuda vermelha e branca surrada - presente de Beto ao amigo, seis meses atrás. Guto manejava uma enxada, retirando lama da frente da casa em pequenas porções, em um esforço lento e penoso (a lama vermelha lhe cobria as canelas magras). Ao lado dele há um balde grande e amassado, com certeza para retirar a sujeira e levar até um caminhão basculante da prefeitura, estacionado do outro lado da rua. Outros moradores fazem exatamente isso, no momento em que Beto freia bruscamente a bicicleta, parando a uns dez metros do portão da casa de Guto.

Olhava indeciso para a camada vermelha que cobria a rua de paralelepípedos, sem nem um pingo de vontade de enfiar sua "magrela" naquele lamaçal. Aliás, o mais provável é que ficasse atolado nele. Aí teria que erguer a bicicleta sobre a cabeça, e caminhar, afundando até as canelas como Guto.

Enquanto decidia o que fazer, Guto parou o trabalho e ergueu a cabeça para enxugar o suor da testa. Ao fazê-lo, avistou seu amigo, e foi logo gritando:

- Ô, mauricinho. Tá com medo de sujar a bicicletinha nova, é? E caiu na risada.

Beto mostrou o dedo médio para ele, mas ria também. Eram bons amigos. Guto adorava usar as diferenças sociais entre eles para fazer piadas, e Beto nunca sentiu nas palavras dele nem uma pontinha de rancor ou inveja.

A casa de Guto ficava ao pé de um morro, e quando chovia em abundância, como aconteceu agora, a lama descia, formando um rio caudaloso avermelhado, que invadia as casa nas proximidades.

- Me dá um tempinho aí, eu vou só jogar esse balde fora! - gritou de novo para Beto, que respondeu, as mãos em concha sobre os lábios:

- Tá bom. Eu espero.

Beto admirou-se quando o amigo ergueu o balde (quantos quilos estaria pesando com toda aquela lama dentro? Dez? Vinte?) e colocou-o sobre o ombro direito, caminhando pela lama até o caminhão.

Sua pele morena estava coberta de suor, e ele respirava igual a um cavalo no final de corrida. Mas chegou até a lateral do caminhão, tirou o balde do ombro e despejou seu conteúdo na caçamba, a qual já começava a transbordar de lama e entulhos.

Feito isso, foi até onde Beto estava, confortavelmente sentado sobre o selim de sua bicicleta. Estava todo sujo de lama, dos pés descalços aos cabelos encarapinhados, mas apesar do cansaço, abriu um sorriso radiante, de dentes branquíssimos e bem-feitos, ao contemplar a nova propriedade de seu melhor amigo.

- Uau! Que "bike" maneira! - exclamou, ao chegar perto. Ganhou no aniversário, né? Demais. Uau!

(Guto havia caído com uma forte gripe na véspera do aniversário de Beto, de modo que não pôde ir à festa na casa do amigo).

Beto desceu da bicicleta para que o amigo pudesse examiná-la melhor.

De perto, as diferenças entre os dois meninos eram gritantes:

Beto (Roberto da Silva) era loiro, usava o cabelo comprido como o de um surfista, alto para sua idade e magro como uma vara.

Guto tinha a tez mais escura, quase negra, era mais baixo que o amigo, mas de compleição física atarracada. Os músculos infantis se destacavam em relevo sob a pele. Era um ano mais velho que Beto.

O pai de Beto era um próspero empresário do setor de transporte rodoviário, e atualmente possuía uma frota de mais de vinte caminhões.

Ele e os pais (era filho único) moravam em uma casa grande e muito bem mobiliada, com dois carros "do ano" na garagem, uma TV de plasma de cinqüenta e duas polegadas na sala e uma bela piscina nos fundos.

Apesar disso, Beto, que estudava em um dos melhores colégios particulares da cidade, não era o protótipo do menino rico mimado, e tinha um bom coração. Seus pais lhe ensinaram a desprezar coisas estúpidas como raça e classe social, e a procurar o que havia de melhor dentro das pessoas.

Pois é lá, meu filho, que reside a verdadeira riqueza, sempre ouvira o pai dizer.

Guto (ou Luís Augusto dos Santos, nome de batismo), não conheceu o pai, e aos doze anos era o mais velho de seis irmãos. Estudava pela manhã em uma escola pública decadente perto de casa, e fazia bicos diversos durante à tarde, às vezes até anoitecer, para ajudar a mãe que lavava roupa para os outros, e pôr o que comer dentro de casa.

O padrasto, um bêbado imprestável com quem a mãe teve a infelicidade de juntar-se após a morte do primeiro marido, abandonou o lar assim que fez o sexto filho nela (e, na opinião de Guto, já ia tarde, pois além de não trabalhar, torrava o pouco dinheiro que entrava em casa com cachaça).

Diversas vezes, ao deitar-se tarde da noite após estudar para as provas, sentia-se tão exausto que o desejo de abandonar a escola tomava conta dele.

Mas sabia que, se não estudasse, se não se dedicasse de corpo e alma aos livros, jamais sairia daquela vida miserável. Guto sabia que só podia contar na vida com ele mesmo, e queria dar uma vida decente à mãe e aos irmãos.

Decidiu que seria médico quando crescesse. E se alguém zombasse dele por isso, ele se limitava a sorrir e baixar a cabeça, um pensamento martelando em sua mente ainda infantil: Eu vou provar a eles que posso. Vou ser doutor, um dia. Aí eu quero ver eles rirem!

Vendo o amigo trabalhando pesado no meio daquela sujeira, Beto envergonhou-se por sua mesquinhez, não querendo sujar a bicicleta nova de lama. Desde quando ele havia se tornado "fresco" assim?

- Sobe! - falou para Guto. - Dá uma volta com ela para experimentar. E, segurando a bicicleta por um dos lados do guidão, estendeu-a ao amigo.

Guto olhou para si mesmo, todo sujo de lama.

- Beto, não dá, eu estou todo... - começou a falar, mas o outro interrompeu-o:

- Vamos parar de frescura? Sobe logo nessa bicicleta! Vai!

Guto hesitou por mais um instante, depois falou:

- Tudo bem, você é quem sabe. E sentou-se, girando o pedal da direita para cima, e apoiando o pé sobre ele.

- Gutoooo! - nesse exato momento a voz da mãe chegou até eles.

- Ai, que saco, o menino falou, baixando o descanso da bicicleta e saltando do selim. - Que é, mãe? - gritou de volta.

- Vem terminar o serviço, pelo menos essa sujeira da frente da casa. Depois você brinca! - Oi Beto, tudo bem? Chegou água na sua casa?

- Não, Dona Iracema. Mas foi por pouco. - Beto respondeu.

- Mande um abraço para sua mãe.

- Mando sim, obrigado.

A mulher enfiou a cabeça para dentro da janela novamente. De dentro da casa, ouvia-se o choro de duas ou três crianças.

- Acho que só vai dar para brincar depois do almoço. - Guto falou, meio desconsolado. Tenho muito serviço pela frente ainda.

Então Beto teve uma idéia.

- Vamos fazer o seguinte: eu te ajudo com a limpeza. Depois você pega a sua bicicleta, eu compro uns lanches e refrigerantes para a gente, e vamos almoçar na mata do outro lado do rio, que tal?

- Você está pronto para se sujar, então? E é serviço pesado!

- Eu agüento. Se você pode, eu também posso. - respondeu Beto.

- Tá legal. Mas não diga que eu não avisei.

O serviço era realmente pesado, e Beto terminou com bolhas nas palmas das mãos, e tão ou mais sujo do que o amigo. E, mesmo com tudo isso, ambos divertiram-se a valer, jogando lama um no outro.

Às 11:00 horas eles pedalavam rua acima, em direção ao mercado mais próximo. O proprietário, um italiano mal-humorado, torceu o nariz para os dois meninos que entravam em seu estabelecimento, deixando pegadas enlameadas por toda parte. Ficou vigiando para ver se tentariam roubar alguma coisa.

Os dois pegaram pães de forma, frios, um pote de maionese, uma garrafa de 2 litros de Coca-Cola, e várias barras de chocolate.

Puseram tudo sobre o balcão do caixa, e o velho teve que engolir sua desconfiança, quando um deles (o loiro de cabelo comprido, que tinha cara de menina) puxou uma nota de cinqüentas reais do bolso da calça imunda, e pagou a compra.

Carregando os mantimentos em sacolas plásticas, subiram em suas bicicletas (a de Guto uma pesada e enferrujada Barraforte da Monark), e tomaram o rumo da ponte velha, que os levaria ao outro lado do rio, onde florescia exuberante a mata nativa. Lá, eles encontrariam um bom lugar para devorar tudo aquilo que levavam.

Enquanto os meninos se afastavam, o italiano olhava a nota de cinqüenta reais contra a luz, para ver se não era falsa.

Guto e Beto pedalavam sem pressa agora, equilibrando as sacolas plásticas nos guidões.

Atravessaram os trinta metros de comprimento da ponte, e aos poucos a cidade foi ficando para trás, com seus caminhões cheios de entulho, pessoas atarefadas, velhotes rabugentos, e tudo o mais.

A mata atlântica se descortinava a menos de um quilômetro deles agora, exuberante em seu verde e seus sons.

Ambos sentiam o vento nos rostos, e apreciavam o céu azul ornamentado de nuvens brancas. O sol brilhava majestoso sobre aquela parte do mundo, e tudo parecia estar em seus devidos lugares.

Mas os dois meninos iriam descobrir que nem tudo estava onde deveria estar!

Por fim, chegaram a uma trilha estreita, quase invisível, que partia da estrada de terra, e seguia ziguezagueando entre a vegetação, que de tão compacta, os obrigou a descer das bicicletas e empurrá-las pelo restante do caminho. Guto seguia na frente.

- Você sabe para onde estamos indo? - perguntou Beto.

- Fique tranqüilo. Eu sei o que estou fazendo. Só me siga, está bem? - Guto respondeu.

- Você é que sabe. Só espero que a gente não se perca. Teriam que chamar os Bombeiros para nos encontrar.

Beto teve um vislumbre dele próprio e de Guto perdidos na mata, gritando por socorro, enquanto a noite caía impiedosamente sobre eles, afastando cada vez mais a chance de salvação. Poderiam encontrar onças, ou cobras, ou cachorros-do-mato famintos, e...

Um calafrio percorreu seu corpo, e sentiu que os pêlos da nuca ficaram em pé.

À medida que a mata ia se fechando mais e mais sobre eles, e a luz do sol só conseguia passar espremendo-se entre a vegetação, uma certa fobia começou a se apossar de Beto. Gravetos e folhas secas estalavam debaixo de seus pés. Galhos batiam em seu rosto e braços. Devia estar arranhado em uma dúzia de lugares, pelo menos.

Sabia que se voltasse agora, Guto ia zoar com ele a semana inteira, para dizer o mínimo. Mas não pôde evitar perguntar:

- Falta muito para chegarmos? Haviam subido com grande esforço um morro, e agora começavam a descer.

- Putz, mas você é chato, hein? - retrucou Guto. - Pronto, chegamos, chorão!

- Chegamos onde? Eu não...

Então Guto pareceu desaparecer em meio a um clarão ofuscante. Aflito, Beto apertou o passo e entrou no clarão também.

Só depois que seus olhos se acostumaram à luz do sol novamente, é que ele viu que haviam saído em uma clareira.

- Uau! É... é demais aqui. Demais, cara!

Uma cachoeira formada por vários desníveis de pedra lisa corria preguiçosamente diante deles. Pássaros cantavam nas árvores ao redor. O sol produzia reflexos prateados na água limpa.

- Isso é um paraíso! - exclamou Beto, momentaneamente embriagado com tanta beleza.

- Descobri este lugar por acaso, faz alguns dias. - disse Guto. - Ia contar para você, mas com aquela confusão toda da chuva...

- O que você fazia no meio do mato para vir parar aqui?

- Bom, eu estava me sentindo meio chateado, e saí pedalando sem saber para onde. Quando percebi, tinha me enfiado na mata, perseguindo um macaco que vi na beira da estrada. E cheguei aqui!

- Perseguindo um macaco? E o que você ia fazer se o pegasse? Treinar ele para trabalhar no circo? - Beto disse isso, e caiu na risada.

- Sei lá, eu achei que podia ser um ótimo bichinho de estimação. - respondeu Guto, meio sem graça.

- Ah, tá bom. Guto e o Seu Macaco Amestrado. Fala sério, cara!

- Aposto que ele é mais inteligente que você, projeto de surfista.

- Aqui pra você, ó! - Beto mostrou de novo o dedo médio para o amigo, ainda rindo.

- Vá à merda! - Guto respondeu. Vamos nos livrar destas tralhas todas e dar um mergulho, que tal?

- Demorou! - Beto começou a se despir, ficando apenas de cueca. Guto fez o mesmo.

Escolheram uma parte mais funda e pularam em pé, afundando até o pescoço.

- Puta que pariu! - gritou Beto. - A água está g-geladaaa!

- Puta que pariu mesmo! - Cara, que frio! - gritou Guto.

Os lábios de Beto começaram a ficar roxos, e ele tremia da cabeça aos pés.

- Vou sair. Não agüento ficar... Então parou de falar de repente. Seus olhos castanhos fixaram um ponto por sobre o ombro direito de Guto.

- Beto? O que foi? O que você está olhando? - Guto perguntou, alarmado com a expressão apalermada na cara do amigo.

De boca aberta, Beto segurou nos ombros do amigo e o virou, para que visse o mesmo que ele tinha visto.

A princípio Guto pensou tratar-se de uma pedra. Mas quando se deu conta do que era, seu queixo desabou como o de Beto.

A mulher estava deitada de costas à margem do rio, a uns quinze ou vinte metros de distância dos dois meninos.

Seu braço esquerdo estava estendido por sobre a cabeça, e seus dedos tocavam a água corrente. A própria cabeça pendia para trás, a poucos centímetros da água. Parecia estar deitada sobre um monte de lençóis brancos, ou um edredom.

- Ela... ela está morta? - perguntou Beto.

- Não sei. Não dá pra saber daqui. - respondeu Guto. - Vamos chegar mais perto?

- Não! - Beto estava ficando assustado. - E se ela estiver apenas deitada tomando sol? Nós podemos assustá-la. Ela pode ficar furiosa!

- Tomando sol? - Guto pressentia algo estranho. - É, pode ser, mas quem ia ficar tomando sol numa posição tão incômoda assim? Caramba, ela vai acordar com uma puta dor no pescoço!

- Ela está nua? - perguntou Beto novamente.

- Parece que sim. - respondeu Guto. Nenhum dos dois tinha visto uma mulher nua antes (isso é, não pessoalmente). De repente, o coração deles disparou com essa possibilidade.

- Vamos chegar perto, mas com cuidado. - propôs Beto. - Para não acordá-la.

- E se ela estiver morta mesmo? O que a gente faz?

- Saímos daqui e chamamos a polícia, oras! - Vamos! - chamou Beto. - Vamos chegar mais perto.

- Estou sentindo cheiro de encrenca... Argumentou Guto, mas começou a sair da água. A brisa que soprava suave imediatamente fez seu corpo tremer inteiro, e ele começou a bater os dentes de frio. Beto também. Mas a sensação passou logo, à medida que se aproximavam da mulher deitada no chão.

Pararam a menos de três metros dela.

Os olhos deles se arregalaram, parecendo que iam saltar das órbitas. Seus queixos desabaram novamente, e o coração de ambos não disparou apenas, saiu numa louca cavalgada!

A mulher não estava deitada em cima de lençóis coisa nenhuma.

Eram asas!

Enormes asas brancas, como asas de cisne, se estendiam por baixo do corpo prostrado às margens daquele riacho de águas geladas.

- Meu Deus! - exclamou Guto. - São... são...

- São asas! - completou Beto, engasgado entre um grito e um soluço. Sentia o mundo girar, mas isso durou apenas alguns segundos.

- Ela deve estar fantasiada. - Guto arriscou uma explicação.

- Fantasiada? Do que? De mulher pássaro? Aqui, no meio do mato? Você ficou louco? - Beto irritou-se, porque no fundo queria aceitar a teoria do amigo, mas não conseguia.

- É? Então o que é isso? Um anjo? Aliás, uma "anja"? Hã? Hã? - Guto o desafiou.

- V-vamos chegar mais perto. - falou Beto, ignorando os comentários do amigo.

Ajoelharam-se um de cada lado da estranha figura, e a observaram com mais atenção.

A mulher era muito branca, e parecia bem alta (Guto calculou um metro e oitenta, mais ou menos), tinha cabelos negros cortados bem curtos, e um corpo de dar inveja a Juliana Paes.

Estava descalça, e sua roupa lembrava um daqueles macacões de mergulho que ficam colados à pele. Mas não se parecia nem um pouco com neoprene ou borracha. Parecia mais seda, ou coisa parecida. Um material muito fino, extremamente justo. Cobria o corpo dela das canelas até o pescoço, indo até os pulsos. As cores da roupa e da pele quase se fundiam; mas a estranha vestimenta tinha um leve tom "perolizado" (como Beto ouvira o pai dizer uma vez, quando conversava sobre pinturas de carros com um amigo).

E o rosto? Nem nos anúncios de cosméticos eles viram nada parecido!

Os traços era perfeitos, simétricos, a boca carnuda de um tom levemente rosado, o nariz no tamanho exato, delicadamente delineado (eles pensaram tudo isso em termos mais simples, de acordo com seu vocabulário).

Em uma frase: era a mulher mais espetacularmente linda que eles já tinham visto!

Guto tocou as penas das asas com as pontas dos dedos, maravilhado.

- Parece de verdade. É... é tão real! Tem que ser real, Beto!

Um Bem-Te-Vi cantou bem perto deles, e os dois deram um grito.

- Puta que pariu! - praguejou Beto. - Quase morri de susto!

- Eu também! - disse Guto. - Passarinho filho da...

- Esqueça isso! Vamos puxar ela para fora do rio.

- Mas...

- Ela está viva. Não viu o peito dela subindo e descendo? Está respirando, então está viva! Me ajude aqui, vamos!

- OK.

Guto pegou o braço esquerdo da mulher (notando inquieto como aquela roupa parecia ser uma segunda pele), e o colocou deitado sobre o ventre dela. Gotas pingaram de seus dedos finos e delicados.

- Olha só, Beto!

- O que?

- A água. A roupa dela não se molha!

Beto viu os pingos caírem sobre o corpo da mulher, e imediatamente escorrerem para o chão.

- Legal, a roupa dela é impermeável. Agora, é para tirar ela daí ou não?

- Segure as pernas dela, enquanto eu apoio a cabeça.

Guto pôs a mão esquerda sob a nuca da mulher, e passou o braço direito por baixo da cintura dela.

- Cuidado com as asas! - disse Beto.

- Eu tomo cuidado. Agora puxe! Devagar. De-va-gar.

Com surpreendente facilidade, eles a puxaram para fora do riacho, e a acomodaram no chão novamente, em uma posição um pouco mais confortável.

- Pronto! - falou Guto. - E agora?

- E eu sei lá? - respondeu Beto. Vamos tentar acordá-la.

- Certo. Ei, moça. Moçaaa! Acorde. Está me ouvindo?

Beto olhava para ela, fascinado.

- Cara, ela é tão linda! - falou, por fim.

- É, sim. - respondeu Guto. - Mas essas asas estão me deixando encabulado. É muito... muito.. ah, sei lá, sinistro!

Beto se abaixou, e seu rosto chegou a uns dez centímetros do dela. Parecia o príncipe encantado, curvando-se para acordar a Bela Adormecida com um beijo.

Então ela abriu os olhos. Beto deu um grito e caiu sentado. Rastejou de bunda para longe dela.

- Ela olhou para mim! Olhou para mim! Ela... ela abriu os olhos!

- Eu... estou... vendo... Guto falou, como se estivesse em um sonho.

A princípio os olhos fitaram apenas o vazio, imóveis.

Depois, lentamente, giraram para a direita, onde estava Guto, em pé ao lado dela.

Guto ficou estarrecido, sem conseguir desviar seus olhos dos dela.

A mulher tinha grandes olhos azuis da cor do céu, de uma beleza indescritível.

- Meu corpo... dói tanto. - a mulher falou. Sua voz era doce como o som de uma harpa.

Guto e Beto sentiram o sangue congelar nas veias!

Ela piscou duas vezes, voltou a fixar o vazio... e fechou os olhos, lentamente.

- Temos que levá-la ao hospital! - gritou Beto, de repente. - Senão ela vai morrer aqui!

- Você ficou louco? - retrucou Guto. - Quer aparecer na cidade com uma mulher com asas? As pessoas vão pirar! E, de mais a mais, como é que nós vamos tirá-la daqui?

- Ela é leve. - Beto argumentou. - Viu como foi fácil tirá-la da água?

- E se ela tiver fraturado algum osso da coluna? Ou uma costela? Lembra da palestra do Corpo de Bombeiros na escola? Podemos matá-la. Ou aleijá-la.

Beto olhou para a mulher deitada aos pés deles. De repente, sentiu vontade de chorar. Olhou para uma das asas, e parecia meio torta... como se estivesse quebrada.

- Então, o que nós vamos fazer? - perguntou a Guto, quase em prantos.

- Calma. Já sei! Um de nós fica aqui, o outro vai buscar ajuda.

- Não. A voz melodiosa soou novamente.

Os meninos olharam para baixo. Os enormes olhos azuis da mulher estavam fixos neles.

- A casa... perto da olaria. - ela falou. - Me escondam lá!

- Esconder? Esconder de quem? - perguntou Beto.

- As outras pessoas. Elas... não podem.. me ver. Por... favor.

Dito isso, fechou os olhos novamente.

Os dois se entreolharam.

- Sabe onde fica? - perguntou Beto.

- A olaria? Claro! Está abandonada há mais de um ano.

- Fica muito longe?

- Não. Acho que a gente consegue carregar ela até lá.

- Vamos tentar? - Beto perguntou, duvidando do que estava prestes a fazer.

- Ela pediu, não pediu? - Vamos ajudá-la.

- OK. Mas não vai ser fácil. - Beto suspirou. Vamos nos vestir.

Acabou sendo mais fácil do que imaginavam. Apesar do tamanho, a mulher parecia pesar menos de trinta quilos. Em poucos minutos, chegaram à olaria abandonada.

Passaram pelo forno há muito desativado, onde pássaros fizeram seus ninhos. Com a chegada do estranho grupo alçaram vôo, lançando pios estridentes.

O forno ficava em uma das pontas de um pátio retangular de terra nua, com cerca de quarenta metros de comprimento. Ao redor, o mato chegava à altura de um homem.

Na outra ponta, uma casinha de tijolos em ruínas.

- É lá? - perguntou Beto, já sem fôlego.

- É. Vamos levá-la para dentro.

- Pode ter cobras. Ou morcegos!

- Vou dar uma olhada primeiro. Vamos pô-la no chão. Devagar. Assim. Puxe a asa do seu lado, que eu puxo do meu.

- Certo - respondeu Beto. As penas sussurraram de encontro a terra.

- Isso. Assim. Tá legal! Vou dar uma olhada dentro da casa. - Guto falou.

- Tome cuidado.

- Vou tomar.

Guto se aproximou da casinha, e quando ia esticar a mão para segurar a maçaneta, uma cascavel passou por baixo da porta, e escancarou as mandíbulas, expondo os dentes e fazendo aquele horrível som de chocalho.

- Guto, cuidado! Uma co... Beto começou a gritar, mas sua voz sumiu de repente.

Viu algo branco passando rente a seu rosto, e ouviu um farfalhar como de seda.

Uma luz dourada cortou o ar, atingindo a cascavel em cheio. Essa incendiou-se imediatamente, e em poucos segundos, só restava dela um monte de cinzas.

Beto e Guto olharam para a mulher.

Ela estava deitada de bruços agora, com o braço esquerdo estendido na direção da casinha, e a cabeça erguida.

As pontas de seus dedos ainda brilhavam com um resíduo daquela luz estranha!

Então ela desmaiou novamente.

Suas asas se abriram em todo o esplendor, branquíssimas. Beto calculou que de uma ponta a outra, deviam medir uns quatro metros. E uma delas estava realmente quebrada!

Guto ficou vermelho, com se estivesse com febre. Grandes gotas de suor escorriam por seu rosto, pelo peito e pelas costas, empapando a camiseta.

A mulher havia salvado sua vida!

Dando-se conta do risco que correra, Guto sentiu as pernas moles como gelatina, e desabou sentado no chão duro.

- Meu Deus do céu... falou baixinho. - Onde é que fomos nos meter?

Surpreendentemente, no interior do casebre abandonado havia uma cama de metal com o colchão ainda sobre ela. O forro se abrira em vários pontos e a espuma se projetava dele como vísceras. O colchão fedia a mofo, e talvez urina de algum animal, mas seria melhor do que deitar a mulher no chão novamente.

- Quando eu contar três, a gente levanta ela e põe na cama. - falou Guto.

- OK.

- Um... dois... e... três. Upa! - os meninos a deitaram de costas. O estrado da cama gemeu dolorosamente, e um pouco de ferrugem se desprendeu do metal, polvilhando o chão de terra batida.

- As asas dela estão dobradas. - falou Beto.

- Vamos virar ela de lado, e ajeitá-las melhor. - sugeriu Guto.

- Tá legal. Ei, cuidado com a da direita. Acho que está quebrada.

- Vamos virar. Assim. Puxe a asa do seu lado. Guto tocou a asa esquerda, maravilhado com sua textura aveludada.

- Estou puxando. Dobre as pernas dela, ela quase não cabe na cama.

- Pronto. Acho que ficou melhor assim.

Durante toda essa operação, a cama rangeu como se fosse desmontar, mais agüentou. A estranha mulher continuou a dormir profundamente, apesar de toda a movimentação.

Guto e Beto desviaram um pouco o olhar de cima dela (era difícil fazer isso, constataram eles), e observaram melhor o lugar onde estavam.

A um canto da casa havia um fogão de lenha, e uma panela fora esquecida em cima dele. Não havia divisórias. A cama, o fogão e uma mesa com duas cadeiras ocupavam o único cômodo.

A um canto, uma cabeça de boneca olhava para as vigas do teto, Seus cabelos haviam sido louros algum dia, mas agora estavam encardidos. Faltava-lhe um olho.

Aqui e ali havia sinais de ocupação temporária: pontas de cigarro (muitas), uma garrafa de cachaça vazia, latas de cerveja, e até uma seringa, com algo marrom em seu interior. Guto deduziu que era sangue. De repente, sentiu o estômago revirar. Mas passou rapidamente.

Voltaram a olhar para a misteriosa mulher que haviam resgatado da beira do rio.

A luz do sol entrava pela janela e banhava suas asas, conferindo-lhe um brilho de prata pura. Era simplesmente lindo observar aquilo!

- Guto?

- Hã?

- Você reparou uma coisa estranha?

- Nããão, claro que não! Toda semana eu dou uma passadinha lá na cachoeira, e sempre tem uma mulher com asas por lá para bater um papo.

- Cala a boca, idiota! - Beto irritou-se, mas era apenas um sentimento superficial. O que o dominava completamente agora era um misto de assombro, encantamento e... medo!

- Calma, estressadinho! - respondeu Guto. - O que você ia dizer?

- Ela estava deitada na margem do rio, e o terreno lá é barrento. Depois, nós a carregamos pela mata, passando por galhos, folhas e mato. Agora, nós a pusemos nessa cama imunda.

- E...?

- Não tem sujeira! - falou Beto. Olha a sola dos pés dela; essa roupa branquinha, e as asas! Parece que foi tudo lavado com sabão Omo! Não tem uma folhinha, nem um grão de areia grudado no corpo dela.

- Caraca! - exclamou Guto. - Tem razão. Eu sabia que alguma coisa estava errada, mas não conseguia perceber o que era. Agora eu saquei!

- Como pode ela não se sujar? - perguntou Beto. - E, pensando melhor, quanto tempo ela ficou debaixo do sol? Não está nem vermelha!

- Como pode uma mulher ter um par de asas, para começo de conversa? - retrucou Guto. - Ela só pode ser... só pode ser...

- Um anjo! Um anjo que veio do céu, e caiu lá perto da gente!

Os dois ficaram olhando para a mulher adormecida durante algum tempo, mudos e fascinados com o que ocorrera.

- O que a gente faz agora? - perguntou Beto. - Chamamos nossos pais?

- Não sei... Viu o que ela falou sobre "as outras pessoas"?

- Ela não queria ser vista por mais ninguém, pelo jeito.

- Eu, no lugar dela, acho que também não ia querer. Imagine só a confusão se alguém descobre que ela está aqui!

- Então, o que a gente faz? Estou começando a ficar com medo! - choramingou Beto.

Nesse momento, o estômago de Guto roncou.

- Acho que já temos a resposta. - Guto falou, e riu.

Beto riu também, e isso aliviou um pouco a tensão dentro daquela casinha horrorosa.

- Eu volto para buscar as nossas compras, e a gente come aqui. - falou Guto. - Você fica para tomar conta dela.

- E se ela acordar, o que eu faço?

Guto pareceu confuso.

- Ah, sei lá, pô! - Puxa conversa com ela até eu voltar. Sei lá!

- E o que a gente conversa com uma anja?

Guto fez um gesto impaciente como quem diz "Não me enche", e saiu para o pátio ensolarado, deixando o amigo a sós com sua inusitada visitante.

No minuto seguinte, Beto ouvia o barulho de mato sendo pisado. Um galho estalou. Depois, silêncio total, exceto pelo canto de um pássaro ali perto, e o zumbido de uma gorda mosca varejeira que entrara na casinha.

Beto bateu palmas uma vez, e esmagou a mosca entre as mãos espalmadas.

Ela ficou grudada no dedo médio de sua mão direita. Algo parecido com muco saía de suas entranhas.

Com uma expressão de nojo, Beto sacudiu a mão, livrando-se do minúsculo corpo, depois limpou o dedo na bermuda, sem prestar atenção no que fazia.

Sem relógio, parecia que o amigo tinha partido há horas, e não poucos minutos. Beto ia até a porta, olhava o pátio e a mata, voltava para dentro, olhava a mulher dormindo, ia de novo até a porta.

Notou que as sombras começavam a mudar de lugar. Já passava muito de meio-dia. O sol brilhava esplendidamente, mas a temperatura era agradável.

Súbito, ele ouviu um ruído vindo do interior da casa. Algo parecido com sua mãe esticando os lençóis da cama. E quando a voz chegou até seus ouvidos, sentiu o sangue gelar nas veias:

- Olá, meu jovem benfeitor!

Beto permaneceu por mais alguns segundos naquela posição, em pé sob o umbral da porta, sem respirar. Então soltou o ar em um longo suspiro, e virou-se lentamente.

A mulher estava sentada na beirada da cama, os pés pousados no chão, olhando para ele e sorrindo - o sorriso mais fantástico que ele já vira em toda sua vida.

- Você parece assustado. - soou a voz musical novamente. - Está com medo de mim?

- M-medo, eu? - a voz custou a sair. - Não, medo não, só... só... eu não esperava...

- Venha. - ela convidou. - Sente-se perto de mim.

- Hã... tá! - Beto engoliu em seco, e fez o que ela pediu. A cama rangeu novamente, protestando contra a carga extra. Mais ferrugem caiu no chão.

Ela girou o tronco, e tomou delicadamente o queixo do menino com a mão esquerda, virando-o até que seus olhos se encontrassem. Suas enormes asas roçaram a parede, produzindo um som suave de sussurro.

Beto pensou que nem a Ana Paula Arósio tinha olhos tão bonitos, tão... azuis!

Então, para seu espanto, ela inclinou-se e o beijou na testa, demoradamente.

O contato de seus lábios era quente e úmido, e um arrepio percorreu a pele do menino.

- Obrigada, a você e seu amigo, por me trazerem em segurança para cá.

- Bom... de nada. - Beto parecia confuso. Afinal de contas, como a gente deveria agir na presença de um anjo de verdade? O que se diz para ele? "Como vão as coisas no céu? Tem falado com Jesus ultimamente"?

A mulher riu, e por um momento pareceu muito humana.

- Não vejo Jesus há vários meses. Desde que eu e meus companheiros partimos em nossa missão.

O queixo do menino desabou. Ela havia lido seus pensamentos! Caramba!

E ela tinha dito "companheiros"? Havia mais anjos por ali? Quantos anjos alguém tem a oportunidade de ver em um único dia? Caramba outra vez.

Passos cruzando o pátio. Uma respiração ofegante.

Guto parou na entrada da casinha, e foi a vez de seu queixo cair diante da cena.

A mulher-anjo e Beto sentados lado a lado na cama, como velhos amigos.

- Olá, Luís Augusto. - disse a mulher. - Ou posso chamá-lo de Guto?

Guto teve que tapar a boca com a mão direita, para abafar um grito de espanto. Ao fazer isso, derrubou a garrafa pet de coca-cola. Ela rolou e foi parar junto aos pés da mulher. Ela se abaixou e pegou a garrafa, estendendo-a a Guto.

- Por falar em nomes, o meu é Laureanna. Muito prazer.

- O... o.. prazer é.. todo meu, respondeu Guto, como a mãe o ensinara. - Está com fome? - perguntou à mulher, que agora tinha um nome, e um nome muito bonito por sinal.

- Não meus queridos. Eu não preciso comer, obrigada. Mas fiquem à vontade, por favor.

Eles ficaram. E comeram mais do que sua fome justificava, corroídos de ansiedade. Haviam muitas perguntas a serem feitas, mas não de estômago vazio.

Ainda aparentando fraqueza, Laureanna voltou a deitar-se na cama decrépita. Virou-se de lado, encolhendo as pernas, e ficou observando os dois meninos comerem.

Depois de alguns copos de Coca-Cola quente, Beto deu um sonoro arroto. Ficou roxo no mesmo instante. Olhou para a mulher.

- Desculpe. Foi sem querer.

Laureanna deu uma risadinha. Parecia divertir-se em observá-los.

E por que não? Fazia tempo que ela não era anjo da guarda de uma criança. E os anjos amam as crianças, porque o coração delas é a coisa mais pura que existe na Terra - até o momento em que o veneno dos Homens, invariavelmente, penetra em suas almas, levando-as ao pecado.

E nada deixa um anjo mais triste, que ver uma criança se perder ao tornar-se um adulto!

- Você queima a minha cara de vergonha, sabia? - disse Guto, mas em seguida ele próprio soltou outro arroto barulhento.

Beto apontou para ele e riu até chorar. Laureanna também riu mais alto, tapando a boca com a mão de dedos longos e delicados.

Terminada a refeição, os meninos voltaram-se para ela. Hora das perguntas.

- Laureanna, como é o céu? - perguntou Guto. Ela sorriu lindamente e respondeu:

- É tudo o que o Criador prometeu aos homens, e muito mais. Como está na Bíblia.

- Todos no céu têm asas como você? - foi a vez de Beto perguntar.

- Não, meus queridos. Todos nós somos espíritos de luz, mas existem diversas funções que exercemos. Nós recebemos asas para nos locomovermos melhor, e podermos servir melhor a Deus.

- E Deus? Como Ele é? Você já falou com Ele? - Guto perguntou.

Laureanna pensou por alguns segundos, indecisa. Por fim, falou:

- Você não vê exatamente Deus. Em Sua presença, você mais O sente do que enxerga propriamente. É simplesmente maravilhoso. Não há palavras em sua língua que definam como é Deus!

- Laureanna, você falou em companheiros, e em uma missão. Então, por que você estava sozinha, caída perto do rio? Onde estão os outros anjos? - Beto indagou.

Subitamente, o sorriso desapareceu do rosto perfeito da mulher, e sua expressão tornou-se grave e sombria.

- Nossa missão... ela murmurou, como se despertasse de um sonho.

Guto e Beto se entreolharam, confusos e um pouco assustados com a mudança repentina no humor de sua nova amiga.

Ela captou seus pensamentos, e tentou tranqüilizá-los.

- Não se preocupem, meus queridos. Vocês não correm perigo por enquanto. Mas o momento de nos separarmos está muito próximo.

- C-como assim? - perguntou Guto. - Que história é essa de correr perigo?

Laureanna fechou os olhos por um momento, e inspirou profundamente. Em seguida, abriu os olhos e fitou os dois meninos.

- É melhor que não saibam de nada. - ela disse, por fim. - Para seu próprio bem.

- Mas... Beto começou a falar, mas ela o interrompeu erguendo a mão.

- Por favor, confiem em mim. Em algumas horas, terei recuperado minhas forças plenamente, e minha asa estará curada. Então poderei partir, para retomar minha missão. Beto insistiu:

- Mas e seus amigos? Eles não vão com você?

Laureanna parecia aflita. Não queria contar a verdade aos dois meninos, mas também não sabia mentir. Anjos não mentem nem para salvar a própria alma. E ela tinha uma dívida de gratidão com ambos. Eles não sabiam - nem iriam saber - mas um grupo de pescadores acabaria por encontrá-la à margem do rio em pouco tempo, se eles não a tivessem tirado de lá, e trazido a salvo até aqui.

Decidiu contar-lhes a verdade. Conheça a verdade, e ela o libertará, lembre-se!

- Eu e mais dois anjos, Natanael e Balthazar, recebemos do próprio Gabriel uma missão sagrada. Ele nos escolheu a dedo, por julgar sermos os mais capazes de executá-la com sucesso, apesar do enorme perigo.

- Quem é Gabriel? - perguntou Beto.

- O Príncipe das Legiões Angelicais.

- E que missão é essa? - Guto perguntou. Sentia a boca seca.

- Resgatar um anjo caído. - Laureanna respondeu, e baixou os olhos. - Um renegado.

Beto e Guto observaram as mãos dela tremerem por um instante. Então ela entrelaçou os dedos, e apertou uma contra a outra.

- Peraí. - falou Guto. - Você está querendo dizer que...

- Sim. - ela respondeu, lendo os pensamentos do menino antes mesmo que ele os tivesse formulado. - Como o outro. Como Lúcifer.

À menção daquele nome, um calafrio percorreu os dois meninos.

Ela não está brincando, pensou Guto. A coisa é da pesada, mesmo. Jesus Cristo!

- Seu nome é Demetrius. - ela continuou. - Nós o perseguimos por vários mundos, até que ele veio parar na Terra. Mas no momento mais crítico nós falhamos.

- Vários mundos? Como assim? - indagou Beto.

- Outros planetas. Outras galáxias. Oh, meus queridos terrestres! Esqueci que vocês julgam serem os únicos habitantes em todo o vasto universo. Mas estão errados. Há mais de oitocentos mil planetas habitados, até onde meu conhecimento alcança.

- Oitocentos mil... falaram os dois ao mesmo tempo, de boca aberta.

- Mas não se aborreçam. Mais da metade dessas civilizações ignora a existência das outras. E será assim por muitas e muitas eras, acreditem.

Beto e Guto não conseguiram falar nada. Ficaram olhando para a mulher à sua frente, embasbacados.

- Deixe-me resumir a situação, por que está na hora de vocês partirem. Não é seguro ficar perto de mim.

Ambos balançaram a cabeça, concordando.

Laureanna olhou para as vigas apodrecidas do teto, suspirou e falou:

- Nosso último confronto ocorreu nesta mata, durante a tempestade. Se vocês caminharem mais dez quilômetros para o sul, verão uma enorme clareira que não estava lá antes de chegarmos. Foi nosso campo de batalha, por assim dizer.

- Natanael e eu havíamos conseguido imobilizar Demetrius, mas não contávamos que ele já havia arrebanhado seguidores das trevas para ajudá-lo. Antes de Balthazar conseguir acorrentá-lo, fomos surpreendidos por um ataque de criaturas da noite: vampiros, lobisomens, espíritos errantes. Ajudado por seu pequeno exército amaldiçoado, Demetrius subjugou meus companheiros, exaurindo suas forças de modo que tiveram de retornar ao plano espiritual. Eu consegui fugir, mas antes exterminei até o último de seus colaboradores!

- Praticamente sem forças, voei para o mais longe que pude, até desmaiar perto do rio. Quando amanheceu, no dia seguinte, vocês me encontraram.

Beto e Guto tremiam, e lágrimas brotavam de seus olhos.

Ela mencionou vampiros. E lobisomens! Bem aqui, na mata que cercava a cidade em que moravam desde que nasceram. Aqui, em Eldorado!

Vendo o medo nos olhos dos meninos, Laureanna ajoelhou-se diante deles, e envolveu ambos em seus braços, trazendo-os para junto de si. Falou docemente:

- Calma, meus queridos. Peço perdão por assustá-los. Amanhã, minhas palavras terão desaparecido de suas mentes, assim como minha lembrança. E suas vidas retornarão ao normal, eu prometo.

As lágrimas de ambos deslizavam pelo estranho tecido da roupa da mulher, e caíam no solo empoeirado. Por fim, se acalmaram.

Ela os afastou, e os olhou com ternura. Beto e Guto sentiram-se afogar na bondade que emanava daqueles olhos cor do céu.

- Agora sabem porque devem partir, e me deixar sozinha. Ao cair da noite estarei melhor, e continuarei minha missão. E vocês deverão estar bem longe daqui!

- Mas não queremos deixar você! - Guto exclamou, um pouco surpreso com a própria sinceridade.

- Queremos ajudar. - falou Beto. - Podemos pedir ajuda. Chamar a Polícia!

O sorriso de Laureanna alargou-se, tocada pela candura daqueles jovens corações.

- Eu estarei bem, eu prometo. - ela disse. - E nenhuma força na terra pode confrontar Demetrius. Acreditem em mim.

Guto se levantou, enxugando o rosto na camisa. Beto imitou-o. Apesar de tudo, não sentiam nem um pingo de vergonha por chorarem na frente daquela mulher.

- Quando você vai embora? - Guto perguntou.

- Ao anoitecer já terei partido.

- Podemos vir nos despedir, pelo menos?

- Não. Devemos nos separar aqui e agora. Imploro que não retornem a esta cabana até que eu tenha ido embora.

- Está bem. - os meninos responderam, sem muita convicção.

Laureanna leu seus pensamentos, e soube que iam voltar de qualquer jeito. Em seu íntimo, decidiu que partiria assim que o sol se pusesse, mesmo que não se sentisse totalmente recuperada. Assim, os dois meninos não correriam riscos.

Ela os abraçou novamente, e beijou cada um na testa e no rosto. Depois ficou observando-os partir, até que a mata os engolisse.

Então voltou para a cama caindo aos pedaços. Procurou a melhor posição possível, e em poucos minutos caiu em um sono profundo.

Ainda dormia quando o sol se despediu, e a lua já iniciava sua escalada no céu salpicado de estrelas.

A algumas centenas de quilômetros dali, e aproximando-se com velocidade vertiginosa, asas cor de chumbo cortavam a noite.

Ele a havia encontrado, afinal.

E o melhor de tudo: ela estava vulnerável.

Fazia mais ou menos uma hora que Beto e Guto tinham retornado da mata. Jogaram as bicicletas sobre a calçada de qualquer jeito, e sentaram no meio-fio, lado a lado, em frente à casa de Guto. Ambos sentiam-se como se tivessem acabado de despertar de um sonho, ainda naquela fronteira em que a mente não distingue fantasia da realidade.

Por fim, depois de alguns minutos de silêncio, Beto falou:

- Isso aconteceu mesmo, Guto? Nós estivemos conversando com um "anjo-mulher"? Ou será que nós dois estamos ficando loucos?

- Nunca ouvi falar de duas pessoas ficando loucas ao mesmo tempo. Principalmente tendo as mesmas alucinações. Balançou a cabeça de um lado para outro, como se tentasse clarear as idéias.

- Não. - falou para Beto. - Eu sei que não fiquei louco. Nós realmente ajudamos um anjo. E ela nos beijou, lembra-se?

- Claro que lembro. Foi como se minha mãe me beijasse. E o cheiro dela... muito gostoso!

- Pois é... ela cheirava como uma flor... não sei bem qual, mas um perfume muito bom. Faz a gente pensar em coisas boas, não sei explicar direito...

- É a mulher mais bonita que eu já vi até hoje! - Beto exclamou, convicto.

- É... Guto estava pensativo. Parecia ver aqueles olhos bem diante dele.

Os dois meninos não sabiam identificar o sentimento, mas estavam apaixonados. Perdidamente apaixonados por uma mulher que, na verdade, era um anjo. Literalmente.

- Quero vê-la mais uma vez antes dela ir embora, Guto!

- Pô, eu também, mas você prestou atenção no que ela falou? Aquele tal de Demetrius é barra pesada, meu. Se ele nos acha no meio do mato com ela, pode matar a gente! - Guto tentou impor firmeza na voz, mas não obteve sucesso.

Ele também queria ver Laureanna mais uma vez. Pelo menos mais uma vez.

Os dois se entreolharam.

- Você tem lanterna em casa? - perguntou Guto.

- Eu não, mas meu pai tem uma das grandes na garagem. Ele usa quando vai pescar. - Ei, está pensando em...

- Voltar lá, e me despedir da Laureanna.

- Você tá louco! Pirou o cabeção de vez?

- E você? Não gostaria de dar um último beijo antes dela partir?

Beto engoliu em seco. Seus olhos brilharam.

- Onde? A que horas? - perguntou a Guto.

- Na ponte, quando o sol sumir atrás das montanhas.

- Isso pode ser perigoso! - o medo se insinuava na voz de Beto.

- Se você não estiver lá, eu vou sozinho. Com lanterna ou sem! - afirmou Guto.

Beto pensou em Laureanna, e no desejo ardente de vê-la mais uma vez.

- Na ponte. Combinado, então! - falou para Guto.

- Não se esqueça da lanterna. E veja se têm pilhas.

- Tá legal. A gente se encontra lá.

- Beleza!

Beto subiu em sua bike, e mal havia ele chegado à primeira esquina, Guto ouviu a mãe chamando-o.

Com o coração aos pulos dentro do peito entrou em casa, procurando disfarçar o que sentia.

18:02 h. Os últimos raios de sol tingem de laranja e vermelho as nuvens.

18:10 h. O manto negro da noite cobre esta parte do globo.

18:21 h. A lua aparece no céu, como uma moeda de prata.

Um vulto passa sobrevoando a cidade de Eldorado, porém sem ser visto por ninguém.

Anjos só podem ser avistados por mortais quando estão fracos demais para se tornarem invisíveis, ou quando desejam fazer contato.

E nenhum dos dois casos se aplica ao ser que corta o céu noturno sobre a cidade, em questão de segundos.

Laureanna desperta assustada.

O interior da cabana está totalmente às escuras. Do lado de fora, a luz da lua ilumina o pátio. Um vaga-lume solitário entra por uma das janelas, pulsando com seu brilho esverdeado, mas ela nem sequer o nota.

Seu primeiro pensamento foi que havia dormido demais. O seguinte foi que devia partir dali imediatamente.

Então ouviu passos na mata fechada. Passos leves, de pés pequenos.

- Os meninos. Estão de volta! - gemeu baixinho.

Ia sair e dizer para que voltassem de onde estavam, mas parou em pé ao lado da cama. Colocou a mão na têmpora direita, onde vibrava um alerta.

Mas alguém mais se aproximava! Estaria ali em questão de segundos!

- Oh, Senhor, não, por favor, eu sinto a presença maligna dele muito perto.

- Laureanna? - voz de um dos meninos. Beto.

- Viemos nos despe... - começou Guto, mas não conseguiu terminar a frase.

- NÃO! - gritou Laureanna da porta. - Afastem-se daqui! Ele está chegando!

Os dois estacaram no limite entre a mata e o pátio despido. Beto trazia nas mãos uma lanterna grande, que lançava um feixe de luz fortíssimo sobre a casinha.

Então um clarão que suplantava a luz da lanterna iluminou o pátio e a casa, cobrindo-os de um tom vivo alaranjado.

Os meninos olharam para cima.

Uma bola de fogo, mais ou menos do tamanho de um fusca se precipitava sobre a casinha. Laureanna olhou para cima. Tudo aconteceu em frações de segundos.

Os dois gritaram o nome dela.

Laureanna se encolheu para dentro da casa.

A bola de fogo atingiu a construção em cheio, causando um clarão ofuscante, e uma explosão que sacudiu o ar.

Os meninos gritaram novamente.

Em meio às chamas que lambiam a casinha, viram, quase sem acreditar, Laureanna alçando vôo através do telhado. Ela atravessou as vigas e telhas, rompendo-as como se fossem de papel!

Subiu uns trinta metros acima do fogo e parou em pleno ar, batendo as asas graciosamente. Tinha os punhos crispados, e olhava fixamente para algo atrás e acima dos meninos.

- Escondam-se! - ela gritou para eles. - Saiam daqui!

Dessa vez eles obedeceram ao pé da letra. Beto jogou a lanterna longe, e ele e Guto se enfiaram entre as árvores, ferindo-se em vários lugares.

Por fim, esconderam-se debaixo de um tronco caído, de onde tinham uma boa visão do pátio da olaria. Respiravam como dois atletas em final de corrida.

Uma voz arrepiante trovejou um pouco à frente de onde estavam:

- Laureanna! - Você vai voltar para junto dos seus. Agora!

Outro clarão. Uma segunda bola de fogo partiu para cima de Laureanna, que executou um lindo "looping" no ar, desviando-se. A bola explodiu na mata atrás da casa, principiando um incêndio.

Beto e Guto se agarraram um ao outro, apavorados.

Estavam presenciando uma batalha celestial: um anjo corrompido, e sua oponente.

Laureanna olhava fixamente para o renegado, cuja trilha ela seguira durante meses. Uma mudança brutal já se operava nele.

Suas asas haviam se tornado de um tom cinza-sujo; os olhos adquiriram um brilho de réptil, e ele havia se tornado maior. Mais forte. As unhas estavam longas e negras, como garras. Uma aura de maldade exalava de seus poros, como gás venenoso. E o rosto se retorcia em uma carranca monstruosa, em nada lembrando o belo rapaz de cabelos ruivos que fora um dia.

- Eu voltarei, Demetrius. Mas você virá comigo!

- Nunca! - o renegado emitiu um urro, e avançou sobre ela.

Mas, ao invés de desviar, ela fechou o punho direito e esperou, mantendo-o junto ao corpo.

Quando Demetrius chegou perto o bastante, ela projetou o punho para frente, atingindo um potente soco no rosto deformado de seu inimigo. O som foi como o de uma marreta atingindo um bloco de concreto sólido!

Demetrius foi lançado com brutalidade para trás, girando sem controle.

Laureanna não esperou. Impulsionou as asas poderosas para frente, e atingiu-o novamente, desta vez no estômago.

O terceiro soco acertou o queixo de Demetrius, e este entrou em queda livre. Ouviu-se um som de galhos se partindo, e em seguida o de um corpo atingindo o chão com força.

Laureanna tocou suavemente o solo com os pés nus, e caminhou até o local onde o renegado caíra.

Demetrius se levantava vagarosamente, sentindo fortes dores. Mais fortes do que a queda que sofrera justificaria, espantou-se.

O que estaria acontecendo?

Laureanna parou diante dele. Não sentia alegria alguma no sofrimento do inimigo. Pelo contrário, seu coração puro se enchia de dor. Ela era incapaz de odiar, quem quer que fosse.

Os dois meninos se adiantaram um pouco, rastejando para tentar ver melhor o que estava acontecendo.

Nesse momento, presenciaram uma coisa espantosa (mais uma, aliás):

Laureanna estendera o braço, e uma forma começara a tremeluzir em sua mão.

Então, uma espada se materializou diante do olhar incrédulo deles!

A lâmina comprida reluzia como prata, e o cabo na mão de Laureanna parecia ouro puro, à luz do luar.

Por um momento, as chamas que ardiam no outro extremo do pátio se refletiram na lâmina, tornando-a rubra como sangue. Ela ergueu a espada, e apontou-a para Demetrius.

- Venha em paz comigo, Demetrius! - ela falou. - Sua alma ainda pode ser salva. Mas deve arrepender-se de todo o coração, e rogar perdão ao Criador.

Para espanto da própria Laureanna, o renegado começou a rir.

Laureanna empunhou a espada com as duas mãos, mantendo-a diante do corpo.

- Demetrius, eu lhe imploro, por tudo que é mais sagrado. - sua voz estava carregada de tristeza. - Volte comigo, em paz.

Súbito a escuridão pareceu saltar sobre ela, em meio a rosnados pavorosos que encheram a noite.

Guto e Beto viram do que se tratava, e não suportaram mais. Sentiram suas bexigas relaxarem, e molharam as calças.

Dois lobisomens se atiraram sobre a mulher; um deles agarrando seus braços, e o outro cravando os dentes em sua coxa esquerda!

O peso combinado dos dois a jogou de costas no chão.

Demetrius deu um grito, antecipando seu triunfo!

Os meninos também gritaram, mas temendo pela vida da amiga.

Laureanna conseguiu soltar as mãos, e agarrando as cabeças dos monstros, bateu-as uma contra a outra, despedaçando-as.

Os lobisomens tombaram pesadamente para os lados, mortos.

Sua coxa queimava como fogo. Ela olhou para baixo, e viu o sangue brotar em abundância do ferimento!

Ela abaixou-se para retomar a espada, mancando. Quando fechou os dedos sobre a empunhadura, algo duro atingiu-a com violência no queixo, fazendo-a desequilibrar-se. Um segundo golpe a derrubou novamente ao chão, sobre o sangue impuro de um dos lobisomens mortos.

Laureanna ergueu-se em seguida, ainda atordoada, mas duas mãos poderosas fecharam-se sobre sua garganta e seu punho direito. Ela sentiu uma força incrível esmagando-o, e acabou deixando a espada cair outra vez. Então foi a vez da pressão em sua garganta aumentar brutalmente, enquanto o outro a suspendia do chão.

Demetrius, já recuperado, mantinha seu rosto a menos de dez centímetros do dela, fitando-a com ódio vivo nos olhos amarelos. Ele ria com os dentes cerrados, e as veias em seu pescoço e testa saltavam, à medida que ela aplicava mais e mais força, estrangulando-a.

- Adeus, minha bela. Dê minhas lembranças a seus amigos, Natanael e Balthazar, quando encontrá-los.

Laureanna sentia sua consciência se esvair. Em segundos seria lançada de volta ao plano espiritual. Falharia em sua missão, assim como os outros falharam antes.

E Demetrius estaria livre para expandir seu poder, e unir-se a outras criaturas infernais. Talvez ao próprio Lúcifer!

Reunindo o que restava de suas forças, ela ergueu as mãos diante do rosto, e enterrou os polegares nos olhos de Demetrius. Este emitiu um uivo de dor, e soltou-a, cambaleando para trás.

- Meus olhos. Ah, sua cadela maldita! Meus olhos!

Laureanna caiu de joelhos, esforçando-se para respirar. As trevas ameaçavam tomar conta de sua mente.

Tocou a base do nariz. Retirou a mão, os dedos vermelhos. Sangrava em dois lugares, agora!

Então veio a compreensão.

Quanto mais tempo permanecia no plano terrestre, mais sujeita à suas leis se tornava.

Ela estava se tornando mortal.

Assim como seu inimigo.

- Estou cego! - Demetrius gritou, o rosto uma máscara de sangue - Como? Como é possível?

- Estamos nos tornando vulneráveis neste plano, Demetrius. Nos tornando mais próximos dos homens.

- É que você pensa, sua desgraçada. Eu não posso vê-la com os olhos, mas posso vê-la com minha mente. E vou terminar o que comecei!

- Que seja feita a vontade de Deus! - Laureanna exclamou, recuperando sua espada.

Em meio à violência daquele combate, Guto teve um pensamento doido: quando conheceram Laureanna, nem água nem sujeira de qualquer tipo aderia ao corpo dela, ou às roupas.

Agora ela estava coberta de sangue e terra. Suas asas impecavelmente brancas tornavam-se encardidas, e ela se movia com dificuldade.

Seria possível um anjo morrer?

Demetrius ergueu o braço estendido sobre a cabeça, e uma espada materializou-se em sua mão. Imediatamente, a arma irrompeu em chamas.

- Guto! Olhe lá! - gritou Beto. - Ele também tem uma espada!

- Ai, meu Deus, ai meu Deus, repetia Guto. - Por favor, não deixe ela morrer, Senhor!

Sentindo-se cada vez mais fraca, Laureanna retesou o corpo, preparando seus músculos para um novo confronto. Sua perna enviava espamos de dor, mas ela os ignorava. Tinha que manter concentração total em seu feroz oponente, ou tudo estaria perdido.

Inclusive sua alma.

Então, Demetrius atacou!

No instante em que ele se lançou contra ela, Laureanna bateu as asas com vigor, e lançou-se bem acima das copas das árvores; pretendia afastar o duelo o mais que pudesse das crianças, que estavam paralisadas de medo, indefesas.

Demetrius alçou vôo também, gargalhando loucamente.

- Enfrente-me, covarde! Aceite seu destino!

Ele subiu mais alto que ela, e começou a descrever uma trajetória descendente.

A lâmina flamejante abateu-se com incrível força sobre Laureanna. Ela bloqueou o primeiro golpe, sentindo os músculos e ossos vibrarem, dos dedos até os ombros. O calor daquele fogo infernal queimava-lhe o rosto.

Arquejando, ela libertou sua espada, e mirou um golpe no pescoço.

Habilmente, Demetrius interrompeu a trajetória da lâmina. Laureanna vislumbrou uma brecha, e atingiu-o duramente com a parte posterior do cabo da espada. Ele balançou para trás, e ela atacou de novo.

Com rapidez sobrenatural ele se recompôs, e bloqueou o ataque dela. Começaram a medir forças, ela pressionando para baixo, ele para cima.

Do chão, os meninos observavam os dois fantásticos combatentes. O som das lâminas se chocando ecoava pelo ar, e penetrava nos ouvidos deles como agulhas!

Então Demetrius acertou um violento chute no seio esquerdo dela, que perdeu momentaneamente o fôlego. Por um instante, não conseguiu respirar. A dor foi terrível, e ela pensou que ia perder os sentidos. Atacou cegamente, e a lâmina só cortou o ar. Demetrius aproveitou-se do momento de confusão de sua adversária, e mirou o ponto entre as sobrancelhas dela. Baixou a lâmina com as duas mãos, e Laureanna só conseguiu bloquear o golpe a milímetros de sua pele. As chamas da espada, porém, queimaram-lhe um lado do rosto, e parte dos cabelos.

Ela soltou um grito de dor, e plantando os dois pés no peito de Demetrius, impulsionou-se para longe dele, batendo as asas furiosamente! Seu inimigo, porém, não pretendia dar-lhe nenhuma chance para se recuperar, e partiu velozmente atrás dela.

- Laureanaaa! - gritaram os meninos ao mesmo tempo. - Cuidado!

- Você vai morrer como uma reles mortal, mulher! - gritou o renegado, preparando o golpe final. - E levarei sua alma para o inferno, como oferenda!

Então Laureanna executou um giro no ar, ficando de frente para ele. Segurou a espada com as duas mãos, e empurrou a lâmina para cima, ao mesmo tempo em que Demetrius projetava a sua para frente!

A espada de Laureanna penetrou pela carne mole sob o queixo de Demetrius, e continuou o trajeto mortal, até sair pelo topo de sua cabeça! Imediatamente, sangue jorrou dos buracos onde estiveram seus olhos!

Ao mesmo tempo, a lâmina em chamas perfurou o estômago de Laureanna, trespassando-lhe o corpo. Ouviu-se um terrível som de chiado, e uma nuvem de vapor ergueu-se em torno dela.

Os dois formidáveis oponentes pairaram no ar durante algum tempo, ainda agarrados à suas armas, as asas batendo espasmodicamente, até pararem de vez.

Então, se soltaram e desabaram do céu.

Beto e Guto viram tudo como se fosse em câmera lenta. A queda dos dois anjos pareceu durar vários minutos, e não apenas alguns segundos.

Demetrius, mais pesado, atingiu o solo primeiro, levantando uma nuvem de poeira. Seu corpo resvalou e rolou de lado, a espada de Laureanna ainda enterrada em seu crânio.

Ela, por sua vez, caiu sobre a copa de uma árvore, ficando presa nos galhos mais baixos. Livre da mão que a empunhava, a espada não mais ardia em chamas.

- Laureanna, nãão! Nãão! - Guto e Beto corriam até onde a amiga caíra, gritando e chorando. Não podiam acreditar no que viam. Ela não podia morrer, não podia!

Pararam debaixo da árvore. O sangue pingava vagarosamente agora do ferimento na perna, e começava a formar uma poça debaixo dela. Uma das asas ficara presa em um galho, e apontava para o céu estrelado. Os lindos olhos azuis estavam fechados; o rosto que enfeitiçara os coraçõezinhos dos dois meninos estava cruelmente queimado. A perna direita pendia frouxa, os dedos do pé apontando para a terra. A espada de Demetrius fora enterrada até o cabo em seu estômago, as bordas cauterizadas pelo fogo.

- Vamos tirar ela daí, Guto! Vamos tirar ela daí! Ela não morreu, ela não morreu, só está desmaiada... - Beto falava entre soluços, apegando-se desesperadamente a uma última esperança.

Guto tentava se controlar, mas um choro convulso sacudia seu corpo também.

- Beto... Beto, não adianta... mais. Ela... ela m-morreu! Ela morreu!

Beto caiu de joelhos, puxando os cabelos louros furiosamente, até saírem mechas em suas mãos. Guto ajoelhou-se na frente dele, e o abraçou, tentando acalmá-lo.

Nesse momento uma luz fortíssima iluminou aquele cenário de horror, transformando a noite em dia!

- O que? - Guto exclamou.

Beto olhou para cima, os olhos inchados de lágrimas, as mãos cheias de tufos de cabelo ensangüentados.

- Vem do céu! - ele conseguiu dizer.

Os dois ficaram em pé. A luz era tão forte que mal dava para olhar para ela, mas mesmo assim os dois avistaram dois vultos vindo através dela.

Vultos com asas!

- Afastem-se, crianças. - uma voz masculina soou.

- Temos um trabalho a fazer. - o outro vulto falou.

Os meninos caminharam para trás, obedientes. As vozes eram calmas, mas havia um tom de comando irresistível nelas.

A luz foi diminuindo, até se extinguir. E então Guto e Beto puderam ver. E a esperança voltou a seus corações.

Dois anjos estavam de pé, sob o corpo inerte de Laureanna. Um era negro, e careca como Michael Jordan; o outro era branco, de longos cabelos castanhos. Eram muito altos. Usavam um traje muito semelhante ao de Laureanna, mas traziam sandálias de couro nos pés, e uma espécie de colete cobria-lhes os troncos avantajados.

Guto não teve dúvidas sobre quem eles eram: Natanael e Balthazar.

Aproximou-se dos dois, e pegou a mão enorme do anjo calvo. Apertou-a, e mais lágrimas desceram de seus olhos.

- Salve ela. - a voz de Guto era quase um lamento. - Vocês são anjos também, salvem a vida dela, por favor.

O anjo cuja mão Guto segurava, e que se chamava Natanael, pousou a outra mão sobre a cabeça do menino, e acariciou-lhe os cabelos. Sorriu para ele.

- Estamos aqui justamente para isso, filho. - disse o anjo. - Nosso Senhor Jesus Cristo em pessoa nos enviou de volta.

Dizendo isso, ambos se aproximaram do corpo devastado de Laureanna. Cuidadosamente, como quem manuseia um vaso muito frágil e precioso, retiraram-na dos galhos que a prendiam.

- Ah, Laureanna. Ah, minha querida. Você sempre foi a mais valorosa entre nós. E mais uma vez você provou isso. - foram as palavras de Natanael.

- Vamos nos apressar, Natanael. - disse Balthazar. - Sinto apenas um leve sopro de vida em seu corpo. Se não agirmos logo, sua alma pode se perder no limbo!

- Que assim seja. Pela vontade de Deus Pai-Todo-Poderoso!

Com um único puxão, a espada foi arrancada do corpo de Laureanna. Nenhuma gota de sangue verteu. No instante seguinte, a arma vaporizou-se na mão de Natanael.

Beto e Guto acompanhavam tudo a pouca distância, os olhos muito arregalados, o coração quase saltando pela boca. Pareciam tão chocados, que não conseguiam sequer chorar. Apenas...olhavam. E em suas mentes, rezavam pela amiga.

Os dois anjos puseram Laureanna deitada de costas, com as asas estendidas.

Então debruçaram-se sobre ela, e cada um por sua vez a beijou na testa, carinhosamente.

Em seguida, puseram as mãos sobre seus ferimentos, e fecharam os olhos, murmurando preces ao Criador. O idioma, incompreensível para os dois meninos, foi aumentando de intensidade e volume. As palavras saíam em torrentes, hipnotizantes!

Foi quando uma luz começou a brilhar no peito de Laureanna, a princípio timidamente, depois cada vez mais forte. Natanael e Balthazar continuaram a rezar, impondo as mãos sobre o corpo dela.

- Olhe! - gritou Beto, protegendo os olhos do clarão. - Olhe a mão dela!

Guto olhou, e viu que os dedos dela se moviam.

- Ela está viva! - os meninos gritaram. E, como se em resposta, uma coluna de luz ergueu-se da mulher, e em um segundo atravessou as nuvens. Ouviu-se um trovão potentíssimo, que fez vibrar o chão, e obrigou os meninos a tapar os ouvidos com as mãos.

Então a coluna de luz recolheu-se, e tudo ficou escuro novamente, exceto pelo brilho fantasmagórico da lua.

Laureanna abriu os olhos lentamente. Uma inspiração profunda passou por entre seus lábios entreabertos. Os dois anjos a sentaram cuidadosamente.

- Natanael? Balthazar? - ela sussurrou. Seu rosto estava belo como antes.

- Bem-vinda de volta, doce Laureanna. - disse Balthazar, e a beijou novamente na testa. Havia tal respeito e reverência nesse gesto, que chegava a comover. Natanael o imitou. - O céu está em júbilo com você, querida Laureanna. Você destruiu o mal que envenenava a alma de Demetrius.

Ela sorriu, olhando ora nos olhos de um, ora nos olhos do outro.

- As crianças... meus pequenos amigos. Estão bem?

Natanael sorriu. Um sorriso bem humano desta vez.

- Acho que eles estão ansiosos para vê-la. Venham, meninos! - ele chamou, gesticulando para que se aproximassem.

- Meus queridos. - ela disse baixinho.

O despertador soou impiedoso, seu bip-bip-bip entrando no cérebro de Beto como uma broca!

Com um tapa, ele o atirou longe. O relógio bateu na parede, e se espatifou no chão.

- Ai, que dor de cabeça! - exclamou. Que bosta de despertador! Saco!

- Beetooo... ouviu a voz da empregada, Lurdes, chamando. Hora de ir para a escola. Levante, que seu café já está pronto.

- Já vou! - ele gritou de volta.

Caramba, sua cabeça estava doendo para valer! E sentia-se zonzo de sono, como se tivesse dormido apenas alguns minutos noite passada.

- Aquele sonho... nossa, parecia tão real. Caramba!

A quilômetros dali, Guto despertou de mau humor e com dor de cabeça. Sua mãe perguntou se ele queria ir para a escola, e ele disse que sim.

Precisava ver Beto, e contar o sonho mais louco que teve em toda sua vida!

SEIS MESES DEPOIS, INÍCIO DE MAIS UM ANO LETIVO...

Guto conseguira uma bolsa de estudos integral, e a partir daquele ano estudaria no mesmo colégio particular que seu melhor amigo.

Feliz e ansioso, ele estava sentado nos degraus da entrada do colégio, esperando Beto chegar. Não demorou muito, e o Audi do pai de Beto parou em frente à escola. Ele acenou para Guto de dentro do carro, que retribuiu o gesto. Beto beijou o pai, e saltou do carro.

- Fala Guto.

- E aí, Beto? Beleza?

- Ansioso para começar as aulas?

- Um pouco. É, só um pouco.

Ficaram um minuto em silêncio. Crianças e adolescentes passavam por eles, subindo e descendo as escadas, animados e barulhentos.

- Você ainda lembra daquele sonho? - perguntou Beto, sem motivo aparente.

- Se lembro. Parece que foi ontem.

- Foi tão real.

- É, foi sim. Muito real.

- Sem contar que nós dois tivemos o mesmo sonho. Isso foi sinistro!

- Oi, meninos.

Os dois viraram a cabeça lentamente, para ver de onde vinha aquela vozinha doce.

Parada a alguns passos de distância, e segurando os livros à frente do corpo, estava uma linda garota de seus treze ou catorze anos. Tinha cabelos negros curtos, e olhos azuis da cor do céu. E era mais alta que eles.

- Podem me informar onde fica a Diretoria?

Os dois meninos se entreolharam, depois olharam de volta para a figura absolutamente deslumbrante diante deles, sorrindo daquele jeito que eles nunca conseguiram esquecer.

- Meu nome é Laura. E o de vocês? - ela perguntou, com sua voz musical.

2 comentários:

  1. Puxa Clessius, fiquei verdadeiramente impressionado!Divulgue seu trabalho que é de ótima qualidade!Amanhã se possível lerei parte do livro! Estou torcendo pelo seu sucesso!

    Abraços,

    Fábio

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  2. Li so um pouquinho, amanha leio o resto.
    Adiciona botao de seguir ali do ladinho, pra n ter que ficar vindo aqui no site td dia pra ver se tem novidades.

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